domingo, 31 de dezembro de 2017

Não vou me adaptar

Ando pensando sem parar na questão da inadequação. Quantos de nós já se sentiram inadequados? Quantos de nós ainda se sentem assim?
Eu diria que todos, absolutamente todos os seres humanos. A única questão é que alguns assumem isto, outros não (não digo publicamente, mas assumir para si).
Falando de mim: esta sensação foi bem frequente durante a adolescência, mesmo tendo um forte (e pequeno: éramos quatro, apenas) grupo de amigos na escola. Saindo daquele ambiente, vivia diversos momentos de inadequação. Esta sensação veio ainda mais forte quando, aos 16 anos, tive um namorado que certamente poderia ser classificado como um playboy – e é importante usar este termo, pois o mesmo diz muito sobre a inadequação que eu sentia. Analisando hoje, vejo que foi a partir desta época que passei a me ver tímida de um jeito que eu desconhecia (era um suplício estar perto dos amigos e amigas dele, às vezes de sua família também). E houve um momento crucial, que foi quando o rapaz, certa vez, disse “você não conhece ninguém”, em meio a uma conversa nossa sobre amigos e conhecidos. A partir daí, tornei-me uma viciada em conhecer pessoas. Eu precisava mostrar que era capaz de ter muitos, muitos amigos, conhecidos etc; que “eu conhecia pessoas, sim”. A partir deste breve namoro, e muito tempo após o término do mesmo, tudo ficou mais superficial – e é aí que muita coisa pode degringolar na vida de alguém: procura-se qualquer amizade, qualquer companhia, quer-se desesperadamente fazer parte de algo, sabe-se lá o quê, e na verdade não importa o quê. O foco é provar para uma pessoa, para várias, para o mundo, que você é um sujeito, que você se relaciona, que você tem ocupações, que você troca ideias, que você existe (através de outros).
Falei desta sensação na adolescência – um período onde todos se sentem especialmente inadequados – para poder falar sobre o quanto tenho me sentido inadequada ultimamente, adulta, mulher feita, “bem resolvida” (hahahah). Poderia dizer que venho me sentindo assim, por diversas razões, há uns quatro anos. Mas, pela primeira vez, tenho visto isso como algo bom.
Por que agora isso se tornou algo positivo? Deve ser porque, de tanto pensar nisso, em quem sou, em meu ego, em minhas carências, em minhas culpas estranhas e despropositadas, tenho entendido que, às vezes, sentir-se inadequado em certos ambientes é a melhor reação possível. Deve ser porque vejo a ânsia que todos nós temos em nos adaptarmos e, toda vez que não me adapto, vejo que posso estar indo por um caminho mais interessante do que aquele onde eu apenas seguiria um grupo. Deve ser porque tenho visto que ir aonde todos vão, sem se preocupar em saber que lugar é esse, muitas vezes pode ser a pior escolha. Deve ser porque tenho entendido que o que nos torna estranhos (a nossos olhos, aos olhos de outros) é o que mais nos identifica, é o que nos torna quem somos. Quando abrimos mão de características nossas apenas pelo desejo de sermos mais um na multidão, perdemos um pouco de nossa essência. Mudar pela vontade de melhorar é ótimo; mas se censurar/odiar simplesmente por suas manias, desejos, hábitos, mesmo quando sabemos que estes não são nocivos, é péssimo.
Tenho pensado neste amor à toda prova que precisamos sentir por nós mesmos. Um amor que deveria ser incondicional, aliado ao discernimento necessário para enxergarmos nossos erros. Um amor profundo que pudesse ignorar, na medida do possível, todo ataque infundado, toda a tentativa de diminuição e exclusão.
Pois eu vejo o amor incondicional que certas pessoas sentem por elas mesmas, e isso me inspira. Pessoas que não se importam com um deboche. Que não levam a sério qualquer tipo de provocação. Que não precisam rebater aqueles que as tentam diminuir, tão confiantes estão em tudo o que fazem e sentem. Imagine você se gostar tanto que, mesmo se um povo inteiro estivesse contra você, esse gostar continuasse lá, inquebrantável... Como o Dr. Stockmann em Um inimigo do povo, odiado por toda uma cidade e permanecendo inabalável; como Lucas, em A caça, permanecendo altivo mesmo quando acusado de um crime terrível; como Brizola, aguentando um auditório inteiro rindo de sua cara e se mantendo firme às suas convicções (indignou os presentes ao falar daquela emissora, sabe como é); como tantas figuras que admiro, que aguentam uma multidão de haters e não encerram suas atividades, não se moldam ao gosto de outros. Evoluem de acordo com suas próprias necessidades e vontades, mudam de acordo com o que o próprio coração delas pede.
O que entendi é que todos nós tendemos a seguir caminhos por vezes solitários (pois isso é algo que a vida exige), mas muito frequentemente desistimos para que não nos sintamos esquisitos. Certas vezes fugimos, a qualquer custo, de um momento conosco. Há uma frase de Pascal que sempre me vêm à mente: “Toda a infelicidade do homem vem de uma incapacidade de ficar em seu quarto sozinho”. A convivência em sociedade, os amigos, as relações de trabalho: tudo isso é necessário e inevitável (e pode ser muito bom), mas disso já sabemos, isso já vivemos. O que acho que ainda não fazemos é falar sobre a solidão; não sobre a sua importância. Preferimos falar da solidão como algo ligado à tristeza, melancolia, depressão e principalmente fracasso (esta última é a palavra mais assustadora nos dias de hoje, em meio às redes sociais e fotos aparentemente alegres com família, amigos etc.). A solidão ainda é muito relacionada a algo que não escolhemos, a uma condição involuntária, jamais uma opção. É comum alguém ir sozinho a um show ou qualquer evento, encontrar algum conhecido por lá e este perguntar, abismado: “Mas você está sozinho?” – talvez verdadeiramente preocupado, talvez constatando que você não está nada bem para chegar àquele ponto. Estar sozinho, aos olhos de tantos, é o mesmo que estar no fundo do poço.  
2017 foi um ano valioso no que diz respeito à percepção deste assunto, para mim. Acho que entendi (quase) de vez minha inadequação, acho que a absorvi de uma forma muito positiva. Meus momentos de solidão se tornaram ainda mais instigantes, os períodos em que posso me isolar se tornaram mais profícuos. Continuo adorando festas e a companhia dos amigos. Apenas sinto que estes momentos não precisam ser tão frequentes quanto precisavam.
Certo dia li no Facebook um texto de uma moça onde ela descrevia um pouco desta inadequação que todos nós sentimos em algum momento:
Um dia a gente ainda vai ter uma conversa honesta sobre a vida com autoestima baixa. Sobre achar que as pessoas não gostam de você, que não confiam, que guardam segredos de você. Sobre achar que sempre tem alguém melhor que você em praticamente qualquer coisa e que você não é especial e singular em nada. A gente ainda vai conversar sobre o inferno que é viver pensando que as pessoas ainda te leem por erros que você cometeu oito, dez anos atrás. Sobre chegar em casa e não conseguir dormir porque ficou achando que falou uma ou outra coisa equivocada ou no tom errado pra alguém. A gente ainda vai conversar sobre o suplício que é dizer um não. A gente ainda vai ter uma conversa sobre sentir isso toda semana, sobre ter medo de se aproximar, de convidar pra um café, de fazer perguntas íntimas pras pessoas. Sobre achar que todos têm seus pares e se sentir meio número primo que compõe os conjuntos por mero acaso. (...) [Lara Vasconcelos]
Todos já se sentiram assim, mesmo que apenas em momentos pontuais. Por que fingiríamos, então, que isso não faz parte da vida? Por que o horror em assumir que aquela pessoa lá não gosta da gente? Ou, ainda, que estamos sozinhos por que não fomos convidados para aquela reuniãozinha (sim, falemos da solidão involuntária, também)? A psicóloga Joan Rosenberg tem uma incrível fala no TED Talks que aborda exatamente este assunto. Ela enumera oito sentimentos que consideramos negativos (tristeza, vergonha, sentimento de incapacidade, raiva, vulnerabilidade – sendo este um dos que acho mais importantes de abordarmos hoje em dia – constrangimento, desapontamento e frustração), e afirma que é importante deixarmos de considerá-los ruins ou negativos, visto que são apenas desconfortáveis. Joan inicia sua fala narrando um episódio que a marcou e a ajudou a se tornar a profissional que hoje é. Aos 19 anos, tentando entrar em uma conversa de outras meninas, uma destas se vira para ela e afirma, simplesmente: “Ei, Joan, quer saber? Você é chata!”. É interessante pensar que um momento de grande terror para Joan (visto que ouvir aquilo era o que ela mais temia ouvir) pode ser visto por outros como algo ridículo, bobo. Mas a grande atenção que Joan deu a este momento, sua vontade de entendê-lo, a vontade de entender a imensa dor que este lhe trouxera, fez com que ela conseguisse não apenas superá-lo, com o tempo, mas ajudar outras pessoas a superarem outras dores, pois foi muito graças a isso que Joan quis se tornar psicóloga. Valeu muito a ela ter enfrentado aquele momento desconfortável, e tantos outros, subsequentes, e ter como saldo uma grande paz consigo.
Ainda assim, meu ego fica indignado toda vez que alguém que admiro não quer estar perto de mim. Meu ego fica furioso toda vez que não consigo mostrar que sou capaz. Meu ego se entristece muito sempre que eu sou ignorada, discreta ou ostensivamente. Mas pensar nisso, dar atenção a isso e tentar entender o porquê disso ser dolorido fez com que eu terminasse o ano de 2017 com a sensação de ter dado importantes passos em relação à enorme vaidade que carrego. Minha inadequação a algumas situações, ambientes e grupos fez com que eu entendesse, antes tarde do que nunca, que estou me adequando razoavelmente bem àquilo que sou.