Ando pensando sem parar na
questão da inadequação. Quantos de nós já se sentiram inadequados? Quantos de nós
ainda se sentem assim?
Eu diria que todos,
absolutamente todos os seres humanos. A única questão é que alguns assumem
isto, outros não (não digo publicamente, mas assumir para si).
Falando de mim: esta sensação foi
bem frequente durante a adolescência, mesmo tendo um forte (e pequeno: éramos
quatro, apenas) grupo de amigos na escola. Saindo daquele ambiente, vivia diversos
momentos de inadequação. Esta sensação veio ainda mais forte quando, aos 16
anos, tive um namorado que certamente poderia ser classificado como um playboy –
e é importante usar este termo, pois o mesmo diz muito sobre a inadequação que eu
sentia. Analisando hoje, vejo que foi a partir desta época que passei a me ver tímida
de um jeito que eu desconhecia (era um suplício estar perto dos amigos e amigas
dele, às vezes de sua família também). E houve um momento crucial, que foi quando
o rapaz, certa vez, disse “você não conhece ninguém”, em meio a uma conversa
nossa sobre amigos e conhecidos. A partir daí, tornei-me uma viciada em
conhecer pessoas. Eu precisava mostrar que era capaz de ter muitos, muitos
amigos, conhecidos etc; que “eu conhecia pessoas, sim”. A partir deste breve
namoro, e muito tempo após o término do mesmo, tudo ficou mais superficial – e
é aí que muita coisa pode degringolar na vida de alguém: procura-se qualquer
amizade, qualquer companhia, quer-se desesperadamente fazer parte de algo,
sabe-se lá o quê, e na verdade não importa o quê. O foco é provar para uma
pessoa, para várias, para o mundo, que você é um sujeito, que você se
relaciona, que você tem ocupações, que você troca ideias, que você existe
(através de outros).
Falei desta sensação na
adolescência – um período onde todos
se sentem especialmente inadequados – para poder falar sobre o quanto tenho me
sentido inadequada ultimamente, adulta, mulher feita, “bem resolvida” (hahahah).
Poderia dizer que venho me sentindo assim, por diversas razões, há uns quatro
anos. Mas, pela primeira vez, tenho visto isso como algo bom.
Por que agora isso se tornou
algo positivo? Deve ser porque, de tanto pensar nisso, em quem sou, em meu ego,
em minhas carências, em minhas culpas estranhas e despropositadas, tenho entendido
que, às vezes, sentir-se inadequado em certos ambientes é a melhor reação
possível. Deve ser porque vejo a ânsia que todos nós temos em nos adaptarmos e,
toda vez que não me adapto, vejo que posso estar indo por um caminho mais interessante
do que aquele onde eu apenas seguiria um grupo. Deve ser porque tenho visto que
ir aonde todos vão, sem se preocupar em saber que lugar é esse, muitas vezes pode ser a
pior escolha. Deve ser porque tenho entendido que o que nos torna estranhos (a
nossos olhos, aos olhos de outros) é o que mais nos identifica, é o que nos
torna quem somos. Quando abrimos mão de características nossas apenas pelo
desejo de sermos mais um na multidão, perdemos um pouco de nossa essência.
Mudar pela vontade de melhorar é ótimo; mas se censurar/odiar simplesmente por
suas manias, desejos, hábitos, mesmo quando sabemos que estes não são nocivos,
é péssimo.
Tenho pensado neste amor à toda
prova que precisamos sentir por nós mesmos. Um amor que deveria ser
incondicional, aliado ao discernimento necessário para enxergarmos nossos
erros. Um amor profundo que pudesse ignorar, na medida do possível, todo ataque
infundado, toda a tentativa de diminuição e exclusão.
Pois eu vejo o amor
incondicional que certas pessoas sentem por elas mesmas, e isso me inspira.
Pessoas que não se importam com um deboche. Que não levam a sério qualquer tipo
de provocação. Que não precisam rebater aqueles que as tentam diminuir, tão
confiantes estão em tudo o que fazem e sentem. Imagine você se gostar tanto
que, mesmo se um povo inteiro estivesse contra você, esse gostar continuasse
lá, inquebrantável... Como o Dr. Stockmann em Um inimigo do povo, odiado por toda uma cidade e permanecendo inabalável;
como Lucas, em A caça, permanecendo altivo mesmo quando acusado de um crime terrível; como Brizola, aguentando um
auditório inteiro rindo de sua cara e se mantendo firme às suas convicções (indignou
os presentes ao falar daquela emissora, sabe como é); como tantas figuras que
admiro, que aguentam uma multidão de haters
e não encerram suas atividades, não se moldam ao gosto de outros. Evoluem de
acordo com suas próprias necessidades e vontades, mudam de acordo com o que o
próprio coração delas pede.
O que entendi é que todos nós
tendemos a seguir caminhos por vezes solitários (pois isso é algo que a vida
exige), mas muito frequentemente desistimos para que não nos sintamos esquisitos.
Certas vezes fugimos, a qualquer custo, de um momento conosco. Há uma frase de
Pascal que sempre me vêm à mente: “Toda a infelicidade do homem vem de uma
incapacidade de ficar em seu quarto sozinho”. A convivência em sociedade, os
amigos, as relações de trabalho: tudo isso é necessário e inevitável (e pode ser
muito bom), mas disso já sabemos, isso já vivemos. O que acho que ainda não
fazemos é falar sobre a solidão; não sobre a sua importância. Preferimos falar
da solidão como algo ligado à tristeza, melancolia, depressão e principalmente fracasso
(esta última é a palavra mais assustadora nos dias de hoje, em meio às redes
sociais e fotos aparentemente alegres com família, amigos etc.). A solidão
ainda é muito relacionada a algo que não escolhemos, a uma condição involuntária,
jamais uma opção. É comum alguém ir sozinho a um show ou qualquer evento, encontrar
algum conhecido por lá e este perguntar, abismado: “Mas você está sozinho?” –
talvez verdadeiramente preocupado, talvez constatando que você não está nada
bem para chegar àquele ponto. Estar sozinho, aos olhos de tantos, é o mesmo que
estar no fundo do poço.
2017 foi um ano valioso no que
diz respeito à percepção deste assunto, para mim. Acho que entendi (quase) de
vez minha inadequação, acho que a absorvi de uma forma muito positiva. Meus
momentos de solidão se tornaram ainda mais instigantes, os períodos em que
posso me isolar se tornaram mais profícuos. Continuo adorando festas e a
companhia dos amigos. Apenas sinto que estes momentos não precisam ser tão
frequentes quanto precisavam.
Certo dia li no Facebook um
texto de uma moça onde ela descrevia um pouco desta inadequação que todos nós
sentimos em algum momento:
Um dia a gente ainda vai ter uma conversa
honesta sobre a vida com autoestima baixa. Sobre achar que as pessoas não
gostam de você, que não confiam, que guardam segredos de você. Sobre
achar que sempre tem alguém melhor que você em praticamente qualquer coisa e
que você não é especial e singular em nada. A gente ainda vai conversar sobre o
inferno que é viver pensando que as pessoas ainda te leem por erros que você
cometeu oito, dez anos atrás. Sobre chegar em casa e não conseguir dormir
porque ficou achando que falou uma ou outra coisa equivocada ou no tom errado
pra alguém. A gente ainda vai conversar sobre o suplício que é dizer um não. A
gente ainda vai ter uma conversa sobre sentir isso toda semana, sobre ter medo
de se aproximar, de convidar pra um café, de fazer perguntas íntimas pras
pessoas. Sobre achar que todos têm seus pares e se sentir meio número primo que
compõe os conjuntos por mero acaso. (...)
[Lara Vasconcelos]
Todos já se sentiram assim, mesmo
que apenas em momentos pontuais. Por que fingiríamos, então, que isso não faz
parte da vida? Por que o horror em assumir que aquela pessoa lá não gosta da
gente? Ou, ainda, que estamos sozinhos por que não fomos convidados para aquela
reuniãozinha (sim, falemos da solidão involuntária, também)? A psicóloga Joan
Rosenberg tem uma incrível fala no TED Talks que aborda exatamente este
assunto. Ela enumera oito sentimentos que consideramos negativos (tristeza,
vergonha, sentimento de incapacidade, raiva, vulnerabilidade – sendo este um dos que acho mais importantes de
abordarmos hoje em dia – constrangimento, desapontamento e frustração), e
afirma que é importante deixarmos de considerá-los ruins ou negativos, visto
que são apenas desconfortáveis. Joan inicia sua fala narrando um episódio que a
marcou e a ajudou a se tornar a profissional que hoje é. Aos 19 anos, tentando
entrar em uma conversa de outras meninas, uma destas se vira para ela e afirma,
simplesmente: “Ei, Joan, quer saber? Você é chata!”. É interessante pensar que um
momento de grande terror para Joan (visto que ouvir aquilo era o que ela mais
temia ouvir) pode ser visto por outros como algo ridículo, bobo. Mas a grande
atenção que Joan deu a este momento, sua vontade de entendê-lo, a vontade de
entender a imensa dor que este lhe trouxera, fez com que ela conseguisse não apenas
superá-lo, com o tempo, mas ajudar outras pessoas a superarem outras dores,
pois foi muito graças a isso que Joan quis se tornar psicóloga. Valeu muito a
ela ter enfrentado aquele momento desconfortável,
e tantos outros, subsequentes, e ter como saldo uma grande paz consigo.
Ainda assim, meu ego fica indignado
toda vez que alguém que admiro não quer estar perto de mim. Meu ego fica furioso
toda vez que não consigo mostrar que sou capaz. Meu ego se entristece muito sempre que
eu sou ignorada, discreta ou ostensivamente. Mas pensar nisso, dar atenção a
isso e tentar entender o porquê disso ser dolorido fez com que eu terminasse o
ano de 2017 com a sensação de ter dado importantes passos em relação à enorme vaidade
que carrego. Minha inadequação a algumas situações, ambientes e grupos fez com
que eu entendesse, antes tarde do que nunca, que estou me adequando razoavelmente
bem àquilo que sou.