quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O sucesso que ninguém tem (ou: que todos têm)


Na televisão, em Brasília: “Só agora Hilda Hilst está ‘chegando’. Nos últimos anos de sua vida é que ela cresceu perante o público.

Em um comentário do YouTube: “Marina [Lima] era bonita, linda voz, mas poderia ter ido bem mais longe, algo foi feito errado”. E a resposta a este comentário também é muito boa de se jogar fora: “Ela perdeu a voz. Talvez se não tivesse acontecido isso ela não teria entrado no ostracismo.”

Em uma entrevista de uma curadora: “Cildo Meireles nunca chegou a ter tanto sucesso internacional, não como outros artistas conseguiram, né?”

Em uma festa, uma pessoa: “O trabalho [de Liniker] é muito legal. Estourou com apenas três músicas lançadas, nem CD tinha, é muito foda.”


Saio de um show onde Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Suzana Salles cantaram apenas canções de Itamar Assumpção e lembro que o Liniker, que tanto sucesso faz, gravou “Fim de festa”, de Itamar, um cara que não fez exatamente sucesso.
É muito, muito mais charmoso fazer sucesso sem nem gravar um CD, super jovem, do que ficar gravando LPs independentes nos anos 80 (como ele conseguia?), gravar CDs nos anos 90 e morrer em 2003 com um grande reconhecimento da crítica e dos colegas músicos, mas sem jamais chegar perto do que jovens artistas conseguem hoje (no quesito público) com seus vídeos no YouTube. Anos depois, regrava-se algo de Itamar, e como vivemos em uma época MUITO MELHOR para qualquer artista independente, quem gravou consegue alcançar um grande público internético e ainda por cima divulga o trabalho do compositor para muitas pessoas que não o conhecem. Isso é incrível.
Mas a parte ruim é quando não vemos que, junto com o esforço de Liniker, há o grande esforço de outras pessoas também – e falo especificamente do esforço de criadores como Itamar Assumpção, que fazem/fizeram o favor de compor pérolas para que depois possamos cantá-las em shows, vídeos etc.
Quando achamos o máximo alguém fazer sucesso “do nada”, “mal começando”, isso pode querer dizer que talvez (e apenas talvez) a gente não respeite muito alguém que passou a vida inteira fazendo algo com toda a dedicação, mas que, no entanto, não ganhou muita visibilidade ao lado do público jovem (que é o que mais consome música, acredito), por exemplo. Talvez a gente ache que este alguém é um pouco pior, mesmo.
E o que pensamos de nós mesmos? Sim, porque se o músico “fracassado” ali não vale muito... Nós devemos valer menos ainda, segundo nossos próprios critérios, certo? Digo isso porque geralmente criticamos quem é bem mais proativo do que nós, quem já gravou várias músicas, já fez diversos shows, escreve livros há anos, já criou uma pá de coisas, já caminhou à beça. Temos a mania de criticar quem está fazendo adoidado ou já fez adoidado.
Estamos mal, e precisamos resolver este desprezo por nós mesmos. Nossos critérios tão altos (eu diria: baixíssimos) nos levam a uma espiral que talvez só nos ajude a cair em depressão. Porque se Cildo Meireles deveria ter alcançado sucesso internacional e não o fez, se Marina Lima “poderia ter ido mais longe”, se Hilda Hilst “só agora está aparecendo para um grande público” (pois a Flip resolveu homenageá-la este ano – e se a Flip falou, tá falado), realmente não sei o que é ser bem sucedido, e não faço a menor ideia se já vi, algum dia, alguma pessoa bem sucedida. Acho que não. E, repito: fico imaginando o que as pessoas que dizem esse tipo de coisa pensam sobre elas mesmas. Pois certamente não fizeram nem um terço do que estes “fracassados” aí fizeram.  
Outra coisa que percebi é que a gente continua vivendo como se ainda estivesse nos anos 90. Como se só conseguíssemos acesso à música e à cultura através dos jornais e da televisão. A gente fica esperando que as informações caiam em nosso colo, e por isso achamos que certos artistas estão no “ostracismo”. E, para completar, nem ficamos sabendo da existência de outros milhares de cantores e compositores que não ficam devendo nada a nenhum dos grandes artistas dos anos 70 e 80 (esses que tanta saudade causam nos comentadores de YouTube: “Hoje em dia só tem lixo” – engraçado, a minha impressão é de que está a cada dia melhor, e não sou nenhuma pesquisadora inveterada de música). Daí o que se faz é ficar usando a internet para ficar choramingando que só toca bosta na rádio (desligar é uma opção, vale lembrar), ao invés de deixar de preguiça e, por exemplo dar uma olhada em algum programa de música nova ali mesmo, no YouTube (como o Cultura Livre – que dá de mil nos programecos de auditório), ou ir a shows de novos artistas e bandas, ou sair para dançar em um lugar onde toque música nova e perguntar que músicas são aquelas ao DJ, por exemplo (sempre fiz isso e conheci muita coisa boa assim). Ninguém tem a obrigação de ficar catando novos sons, nem de correr atrás das mil novidades maravilhosas que surgem por dia na internet (ouvir música é prazer, não obrigação nem prestação de contas), mas não vale dizer que tal artista “sumiu” se você nem deu uma olhada para se informar sobre o fato de que, na verdade, ele já lançou uns quatro CDs desde o último que você ouviu. Assim como não vale falar que não há nada bom sendo feito. Se conferir, vai ver que tem.
Mas fugi um pouco do assunto: o que me impressiona e me motivou a escrever este texto é o fato de que somos extremamente “exigentes” com os outros, e isso deve desmotivar muito mais a nós mesmos do que a eles (embora certamente ajude a piorar a vida de quem está do lado, ouvindo este bando de chorume – penso que esta atitude realmente pode influenciar alguém a desistir do que está fazendo, ou a se achar desprezível).
E acho que é esse comportamento que faz com que a gente, paradoxalmente, supervalorize cada passo que dê. Ao invés de lidarmos com naturalidade com o que criamos, achamos que o mundo inteiro tem que aplaudir – e daí, é claro, ficamos putos com o mundo, como se este fosse injusto e não visse o nosso valor. Quem tem que valorizar o que a gente faz somos nós. Quem tem que entender, de verdade, o que aquilo significa, somos nós; quem tem que se emocionar com o que conseguimos compor somos nós. Ninguém tem que aprovar nada. Mas a gente fica às vezes até inconveniente, convidando os amigos para curtirem a nossa página a cada semana (desculpa, já fiz muito isso, mas um belo dia resolvi mudar), até que o amigo finalmente faça a obrigação dele e curta o raio da página. Ficamos nessa posição de escrever textão no Face quando nosso espetáculo fica vazio, porque achamos inadmissível que aquela exposição censurada cause tanta comoção e o nosso espetáculo burlesco – com certeza lindo – tenha ficado quase vazio. Vejo essa postura como mimada, e creio que só sirva mesmo para tentar incutir a famosa culpa em quem estiver lendo o lamento textual (entrelinhas: “Vocês não me reconhecem como artista, vocês não me dão valor, ninguém se ajuda nessa joça. É por isso que o Brasil está do jeito que está.”). De novo: quem tem que achar maneiro pra cacete o que eu faço sou eu. E que eu valorize, mas não supervalorize algo que todos os meus colegas de profissão também fazem, também suam para conseguir, também cortam um dobrado para realizar. Valorizar é essencial para a manutenção do que fazemos; supervalorizar é o mesmo que exigir que o mundo pare de fazer o que está fazendo para dar o tapinha nas costas que tanto queremos. 
Lembrei de uma fala de um personagem do livro Solidão em família, de Esdras do Nascimento, que acho que se conecta com esse último exemplo que abordei: No dia em que você se preocupar menos com você, no dia em que você descobrir que existem pessoas ao seu redor; no dia em que você descobrir que essas pessoas vivem, sofrem, comem, respiram; que essas pessoas também têm problemas e também têm momentos de felicidade, você viverá melhor”.   

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