sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A força da grana


Quais são as regras que inventamos em relação ao dinheiro? Quais são as armadilhas na quais caímos quando este é o assunto (dentro do campo artístico)?

Hoje em dia é bem mais fácil fazermos bons vídeos e clipes (com nosso celular razoável ou com uma câmera emprestada – pois muito mais amigos têm boas filmadoras, por exemplo); é bem mais fácil termos boas fotos para divulgação; é bem mais fácil conseguirmos gravar nossas faixas em casa com uma boa placa de som. E, com isso, o olhar em relação ao artista ficou ainda mais exigente. Todo mundo tem que mandar muito bem. E não estou falando sobre a criação artística, mas sobre a parte estética. Se você não tiver vídeos muito maneiros, de ótima qualidade, não contratar maquiador e figurinista para seu clipe, não conseguir encomendar uma arte maneiríssima para a capa e encarte do seu CD, talvez você seja visto como um artista meia bomba, desleixado até. Daí fica a pergunta: para ser artista tem que ter grana? Ou: quem tem pouco dinheiro deve se abster de apresentar sua arte enquanto ela não estiver impecável visualmente?
Acho importante não cairmos nesse erro. Se atualmente a situação é mais favorável para o artista independente e bons equipamentos estão mais acessíveis, ótimo. Que bom que podemos aproveitar muito mais essas oportunidades. Mas não dá para ter um padrão estético totalmente higienizado e elitizado e achar que quem não puder fazer assim “não está levando o próprio trabalho a sério”. Sejamos francos: o que é mais importante, a criação ou o compartilhamento dessa criação?
Acho bem equivocado usar a grana como medida de todas as coisas. Por isso penso ser importante que a gente faça, sim, a nossa arte da forma mais simples, se essa for a forma possível (diria até que às vezes essa acaba sendo a forma mais interessante). Ruim mesmo é não fazer; e sempre insistirei nisso. Ruim é adiar eternamente a gravação daquele disco porque, né, você quer fazer “com qualidade”. Trata-se de uma qualidade que pede uma grana que você não tem e nem tem perspectiva de ter? Então melhor pensar em outra estratégia, porque pelo visto você quer e precisa dividir sua criação, mesmo que não seja daquela forma ideal (irreal).
(Pode ser que os seus planos grandiosos estejam, pelo contrário, te estimulando, te deixando cada dia mais motivado, e exatamente graças a essa minúcia e detalhismo você tenha cada vez mais certeza de que os irá realizar, em seu próprio tempo. Acho ótimo quando um plano vem para nos ajudar, e não para boicotar e adiar infinitamente a concretização de algo.)
O simples, é claro, talvez seja lido como desleixo. Mas, pense: é bom que seja lido assim. Digo, será que você, artista, precisa ceder à opinião de alguém? Acaba sendo uma boa prova de fogo. Se você gostou de verdade do que fez, mostre logo ao mundo – da melhor forma possível, é claro –, mesmo que preferisse que a faixa estivesse melhor gravada, arranjada etc.
Não sou a favor de fazer de qualquer jeito, e nem de fazer assim só para depois ficar frustrado e se criticando. Pelo contrário, estou exatamente escrevendo aqui um texto antifrustração (hahaha!), e por isso penso que não podemos ceder a um tipo de pressão elitista e excludente, que rola a torto e a direito por aí, e que freia nossos impulsos criativos sempre que possível.
Uma boa forma de furar este esquema é parar de usá-lo como padrão, esquecer de sua existência e sair fazendo do jeito que você pode. Sou a favor do capricho, sim, e concordo com a frase “tudo o que pode ser feito, pode ser bem feito”, mas se estivermos falando de um bem feito que depende de muita grana, aí discordo bastante.
E penso que a criatividade pode ir a nosso favor. Usar a falta de verba como justificativa pode ser convincente para qualquer um à nossa volta, mas não vai nos ajudar em nada. Vale mais tentar driblar pela criatividade. Não estou aqui fazendo discurso de coach, tipo, “se você quiser mesmo, vai lá, dá um jeito e faz” – até concordo com essa fala, de forma geral, mas cada caso é um caso, e se a gente não tiver nem o dinheiro da passagem, ou o da comida, esse tipo de pensamento é só meritocrático, mesmo. Acho bem melhor quando a gente consegue burlar esse sistema para poucos; seja fazendo parcerias e escambos, seja sendo o mais autônomo possível para colocar essas ideias em prática (cada um funciona de um jeito). Mas penso que não vale pegar um empréstimo e ficar tenso meses a fio, por exemplo, graças a um senso comum que alardeia que só através do dinheiro é possível realizar os próprios objetivos.
O que eu tenho observado na minha vida e na vida de muitas pessoas que estão à minha volta é que existe um jeito de fazer a própria arte sem ter grana, ou com bem pouca grana. Dá-se um jeito. E aí, olha que beleza, fura-se esse pensamento, ou melhor, fissura-se o capitalismo, como diria John Holloway. Deixemos os luxos para quem acha isso importante. (E se você acha, vá em frente, mas tente não julgar o colega adepto do do it yourself.)
Lembrei da ocasião em que fui fazer uma sessão de fotos com um ótimo fotógrafo: paguei a ele um dinheiro que eu não podia gastar, mas gastei. Adorei o resultado -- são as minhas fotos mais bacanas --, mas paguei o preço da vaidade. Eu não precisava daquelas fotos. Felizmente hoje entendo que isso não é imprescindível: dá para ser artista sem ter uma foto maneira. Dá para ser artista até sem uma foto sequer (ninguém confisca sua carteirinha se você não tiver nem uma 3x4). Então não tem essa. Se quiser e puder, tire fotos com um profissional que você sabe que vai te entregar um ótimo resultado depois, mas, se não é o caso, tire você mesmo ou peça para algum amigo e veja se sai alguma coisa aproveitável. Você não estará sendo um desleixado, você simplesmente estará dando o seu jeito. Isso não é sacanagem com o seu público, nem com os fotógrafos profissionais. Isso é se adaptar à sua realidade.
Acho engraçada essa balela sobre a imagem do artista, porque se a grana pode ajudar a criar bons cenários para o show, bons figurinos e bons videoclipes, na parte criativa, felizmente, o dinheiro não apita em nada. Se você não está se sentindo inventivo, se você não está conseguindo escrever, se você está se sentindo bloqueado, não é a grana que vai resolver. A parte mais importante do processo é imune às cédulas. Está se sentindo mais relaxado para compor porque não precisa se preocupar com as contas? Ótimo! E faz todo o sentido. Mas vai precisar usar o esforço de sempre para ligar os pontos, estruturar as frases da forma mais adequada ao que você quer dizer etc. Felizmente o dinheiro não compra esse esforço tão gostoso e recompensador.  
E na verdade eu acho, também, esse papo muito antigo. Quando a gente tenta incutir essa ideia em alguém ou em nós mesmos (de que o artista tem que estar sempre irretocável), estamos só repetindo um discurso que a gente ouve desde que nasceu, ou desde que começou a prestar atenção nesse assunto. É um chavão danado, e a gente está em uma época onde o questionamento dos chavões está a todo vapor. Vamos aproveitar.
(E que a grana só esteja aí para ajudar a erguer coisas belas.)

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