sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Considerações finais


Eu queria escrever vários textos antes de fechar este blog em um único pacote-livro.
Queria escrever sobre isso da gente muitas vezes querer ser a azeitona na empada dos outros, sobre o desejo de fugir da empreitada mais perigosa e ousada de todas, que é fazer a própria massa da empada, o próprio recheio. Sentimos tanta necessidade de sermos parte de algum grupo que preferimos boicotar nossos potentes projetos pessoais. Acabamos preferindo ser a “azeitona” em algum projeto dos outros... O receio da quietude e da revolução que esta quietude pode proporcionar acaba engolindo a necessidade de criar: o importante é estar com outras pessoas, pois “a solidão é fera, a solidão devora”. Mas, hoje vejo, só tem graça estar junto quando não é por medo de estar sozinho. 
Queria escrever sobre disputas, e sobre como, desde a Copa de 1994 eu percebi, com muita força, o quanto não gosto de competições. É que eu vi a Copa do início ao fim, mas ficava angustiada cada vez que os técnicos dos times perdedores eram filmados. Eu nunca apreciei competições, nunca tive espírito competitivo, mas esqueci disso quando participei de alguns poucos festivais de música. Embora esta fase tenha sido muito legal, pelas viagens, pelas canções que cantei e pelas pessoas que conheci nestas situações, eu ainda não havia parado para pensar, seriamente, no fato de que competição é a base de uma sociedade na qual não me encaixo. A sociedade com a qual me identifico  e que existe aqui, em diversos núcleos, em diversos locais , é aquela das feiras grátis, das mostras de música (onde “ninguém ganha”; todos ganham), e que tem mais a ver com a visão de mundo de Sixto Rodriguez (que “faltou” à cerimônia do Oscar, por exemplo). Quando descobri este tipo de universo, respirei aliviada. Como em uma crônica de Mauro Rasi (“viu, bicha? Podia!”), a vida pareceu me dizer que eu era livre para escolher o caminho que eu bem entendesse, e não havia regras. Eu teria de ir fazendo minhas escolhas meditando, pensando, me entendendo e sendo bem sincera comigo. Eu queria escrever um texto para lançar a pergunta: por que é que nós nos colocamos em uma situação onde alguém julgará se nós mandamos bem, médio ou mal (em testes/audições/festivais)? Demorei para entender que isso não me agradava e nem combinava comigo, em absoluto (por que não nos submetemos apenas ao crivo mais exigente de todos, crivo esse até cruel, às vezes, que é o nosso? Por que não apenas nos perguntamos: isso está bom, mesmo? Eu realmente gostei do que fiz? Acho que essa é a prova mais dura de todas). E queria também escrever que entendi que, para outros artistas, os festivais têm o efeito contrário: as competições são um momento positivo, do qual saem cada vez mais potentes, mais motivados, e muitos deles conseguem se manter financeiramente graças a esta estrutura.
Estou cheia de rascunhos de textos, de fragmentos, de frases soltas que virariam textos, como sempre viram. Mas há uns cinco dias  desde domingo, exatamente  uma melancolia tem sido mais persistente do que o esperado. E fico até pensando se cabe ter questões existenciais como essas que coloquei acima. Penso: é claro que cabe. Mas há certo pudor em falar sobre subjetividades nesse conturbado momento político – espremidos que estamos entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais –, visto que a objetividade é tão importante agora.
Porém, existe algo mais precioso a resguardarmos, agora, que nossos sentimentos? Há algo mais importante do que nossa saúde mental? Eu sinto que preciso manter o ânimo, porque o desânimo é um eficiente caminho para uma tristeza que pode levar à depressão, à descrença... Nada pior do que perder a esperança.
Tenho pensado no bem que a música me fez e faz. No bem que os filmes que tenho visto me fazem. Andei lembrando de André Mendes cantando “Anos dourados”, ao violão; de Léo de Freitas ouvindo comigo “Paradise” do Coldplay, no carro, a caminho de um casamento onde iríamos tocar essa e outras; lembro dos shows que fiz com o grupo Cirandinha, cantando e também ouvindo André Mendes (de novo) interpretando “Leãozinho”, ao violão. É um prazer imediato pensar nestes momentos.
Lembro do ensaio de ontem, com Pedro Costa, e toda a sua alegria serena, de sempre. Foi muito bom cantar. Pois o dia estava lindo, cinza, do jeito que adoro, mas aquele cinza parecia estar em perfeito acordo com meus sentimentos melancólicos. E foi bom voltar de ônibus, o peito ligeiramente menos apertado, lendo um romance que se ambienta em 1964, com uma insistente chuva batendo nos vidros. Foi bom descer do ônibus, e principalmente subir a ladeira que é minha rua. Aí, senti paz. E uma paz ainda maior senti ao chegar em casa e encontrar a pessoa com quem divido minha vida. E, ao conversarmos, matei um pouco as angústias, pois é isso o que sempre sinto quando nós dois conversamos.
Estou lembrando dos livros que li e que estão intimamente ligados ao que estou sentindo, porque estão em perfeito diálogo com o momento que vivemos agora, esse momento de um medo do que pode vir. Livros de Frei Betto, Alex Polari, Heloneida Studart, que tratam dessa atmosfera onde a liberdade está por um triz, ou onde a mesma já está perdida.
Pensar sobre o que o Brasil significa para mim é lembrar do quanto o país nunca me atraiu, até os 16 anos. E lembrar que, a partir de 1999, morar no Brasil foi se tornando uma delícia, cheia de dores, é claro, mas uma aventura muito boa. Fui gostando de cada detalhe, cada malícia, cada brincadeira que a língua faz (gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões), cada pedaço de sol, cada esquina. Voltar de um período de apenas três meses em um país estrangeiro foi o suficiente. Agora era hora de valorizar o local onde eu era cidadã, e deixar para lá, bem longe, qualquer tipo de devaneio sobre “morar na Europa”. Agora era hora de curtir o que havia de mais valioso no Brasil, e não era pouco. E também, anos depois (muitos!), foi hora de começar a pensar, a sério, sem ressentimentos e sem frases feitas, no que o Brasil tinha de mais nocivo. E esse é o amor na sua forma mais interessante, penso: aquele que entende, vê os defeitos, continua amando. Porque vê e vive coisas lindas graças a este grande, este continental sentimento.
Tenho dificuldades em imaginar uma vida fora do Brasil, hoje, ao mesmo tempo em que não hesitaria em poupar minha vida através de uma distância geográfica daqui, se necessário fosse. Mas a verdade é que o Brasil me acolhe de um jeito que será difícil outro lugar acolher. Se aos 12, 13 anos, eu amava tudo o que envolvesse o rock e a língua inglesa, hoje prefiro uma multiplicidade de coisas, e em especial a multiplicidade que existe no Brasil: o clima, a música, a comida, o já mencionado idioma, as relações humanas, o humor no dia a dia, os cheiros, a natureza, as etnias, os imigrantes, o concreto das cidades, São Paulo, Minas, Paraná, Paraíba, Bahia, Goiás e tantos outros que conheci e que preciso ainda conhecer.
É hora de nos alimentarmos direito. É hora de nos cercarmos de bons momentos, de arte que nos toca, de pessoas que vejam o mundo de forma ligeiramente semelhante à nossa. Precisamos alimentar o coração das melhores coisas.
Tive a oportunidade de conhecer Auschwitz, em 2016, e foi uma experiência das mais valiosas. O grande tamanho daquele local me fez ficar bastante tempo ali, conhecendo melhor o horror que víamos retratado em filmes e livros. Eu havia chegado ao local bem nutrida, com plena energia física e emocional, e creio que por isso consegui passar por tudo sem grandes traumas ou gatilhos, mesmo sendo difícil ver o retrato de crianças chorando (posando, provavelmente, para pessoas que só “estavam cumprindo ordens”, sabe?) e fotos muito, muito mais terríveis do que estas. Mas eu e meu companheiro, apesar de eternamente impactados, estávamos de pé, sangue circulando, pressão boa, saúde perfeita. Saímos de lá e falamos sobre aquilo sem melindres, digerimos ao máximo aqueles dados tão difíceis. E posso dizer que esta visita nos deixou ainda mais fortes, pois é isso o que o conhecimento faz conosco.
E insisto que se alimentar bem é fundamental, pois já estamos tendo muitas barras para aguentar, barras ainda piores do que ver fotos, do que revisitar um passado de terror: ainda mais doído do que relembrar um horror é viver este horror em uma versão 2018/2019. 
Temos que estar bem para lutar, HOJE, contra pessoas que certamente concordam com o que Hitler fez, mesmo que não tenham coragem de admitir isso publicamente, por medo de perder votos. Acreditam em outro holocausto, à brasileira, cujo alvo já sabemos (negros e LGBTIs; pessoas pobres, em geral).
Consegui passar pelo tenso período pré-eleições vendo diariamente entrevistas de Ciro Gomes e Fernando Haddad (este último eu acompanho em entrevistas desde 2014). Podia ter visto também as de Guilherme Boulos, mas a dúvida sobre meu voto me fez focar nos dois primeiros. Foi uma boa forma de manter o ânimo, vê-los explanando suas visões sobre educação, saúde, cidades, mobilidade. Até o dia 7 de outubro eu consegui segurar bem o moral, vendo como existem políticos muito bem preparados e, principalmente, motivados por ótimas razões, norteados por uma vocação pela coletividade. Depois é que o cenário ficou ainda mais sério. Ver as entrevistas de políticos que admiro ainda é uma necessidade, mas já não me alivia tanto. Não dá para fingir que tudo não se agravou desde o último domingo.
Eu estava com vontade de falar sobre tantas coisas, antes de fechar mais este blog!  Queria escrever um texto sobre quando fui com minha antiga banda a uma reunião na Sony, ali em Botafogo, em 2005. Foi desconfortável. Haviam nos chamado para conversar após uma crítica positiva de nosso CD em um jornalão. Fomos recebidos pelo Bruno Batista (diretor artístico? Acho que sim), que nos falou sobre várias coisas, sobre como o universo do rap tinha letras ótimas etc., sobre como a banda Luxúria (que na época se chamava Boneca Inflável) era muito boa. Mas durante toda a reunião nós, da banda, sentimos algo do tipo “o que estamos fazendo aqui”? Não entendi até hoje.
Também até hoje não entendi o e-mail que recebi de alguém da Universal (Dani Motta?) falando que o Paul Ralphes, diretor artístico da gravadora à época, queria conversar comigo... Ou era ela, Dani, quem queria conversar comigo? Foi algo assim. Mas o nome dele surgiu no e-mail, que eu respondi prontamente. Isso foi em 2012, e nunca mais ouvi falar deles.
Nunca entendi também o fato de alguém da produção do The Voice ter me ligado em 2012 sobre uma audição (“eu nem me inscrevi!” – “mas o Daniel Silveira te indicou”. Não sei quem é Daniel Silveira). Fui fazer o teste, que foi até interessante porque cantei uma música que gosto muito; mas dias depois alguém ligou querendo saber de mim, se eu tinha alguma história difícil de família, se havia algum causo interessante para contar etc. Deu para sentir o clima xarope na hora.
(Estes três últimos casos aí foram bem emblemáticos em relação à minha total inaptidão para qualquer coisa do tipo gravadora, teste, audição, mercado musical etc.)
Mas não vai dar para mencionar aqui tudo o que eu queria falar. Estou olhando todos os bilhetes que escrevi, com anotações “escrever texto”. Não vai dar. Eu queria escrever 50 textos para publicar, mas serão apenas 42, ao final. Sinto que é hora de fechar. Já estou escrevendo outras coisas, estruturadas de outra forma, e bastante envolvida com estas.
E a melancolia que veio com o primeiro turno das eleições me fez buscar alento nos momentos que mencionei: Coldplay, “Leãozinho”, “Anos dourados”, a serenidade alegre do Pedro Costa, chegar em casa, conversar com quem amo. E ir, hoje, a uma festinha de Dia das Crianças, em Santa Bárbara, Niterói, aqui do lado de casa, também ajudou muito. Ver a rua fechada para que filhos e pais se divertissem com guloseimas, Guara Crac e presentes. Havia mágico, muitos cachorros de rua, escorrega inflável. Foi um passeio delicioso, e voltei mais animada, e diria até que, hoje, sexta-feira, estou sem melancolia. Diria que ela se foi.
Mas ela voltará, porque a razão dela ter vindo ainda está aí. E exatamente porque as coisas estão mudando tanto, penso que é hora de tornar estes textos, já, um livro independente, para que o ciclo se feche. Não há dúvidas: as coisas estão mudando muito, o Brasil está mudando, e talvez tudo fique muito diferente. Um novo ciclo de conversas, textos, músicas, talvez se inicie. Ou não! Mas a impressão é esta, e a vontade é de encerrar, por ora.
Fico satisfeita de ter podido, mesmo que rapidamente, mencionar algumas das coisas que eu queria ter desenvolvido por aqui. Foi bom misturar sentimentos e contar causos neste texto longo; foi bom desabafar sobre o momento tenso, mas também celebrar os momentos gostosos, como uma festa de Dia das Crianças, um ensaio, um livro lido no ônibus.
Acho que acabei conseguindo falar sobre o que eu queria, na verdade. Que bom.
Espero que nós consigamos seguir sem renunciar à nossa subjetividade, aos nossos prazeres, a todas as coisas que constroem nossa identidade. Que possamos aplicar nossos próprios remédios tarja branca, sem restrições, sem receitas, sem receio. Talvez isso nos deixe fortes o suficiente para enfrentar toda a bronca que pode ainda vir.
E já que estamos falando em preservar a saúde, fechemos com a doutora Nise da Silveira: “Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda”.

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