Em uma aula o professor comenta
sobre a saída de Nara Leão do espetáculo Opinião,
quando Maria Bethânia a substituiu. Essa rápida menção – que serviu apenas como
ponte para algum outro assunto – já foi o suficiente para que um dos alunos da
sala comentasse, quase que imediatamente: “Muito melhor, né?” – ou algo por aí.
Em um ensaio, as desnecessárias
comparações entre Gil e Caetano: “Esse aqui toca muito mais”, “esse canta muito
mais”, “mas esse escreve muito melhor” etc. A comparação entre esses dois,
aliás, já presenciei diversas vezes – parece que falar sobre eles por pouco
mais de dois minutos obrigatoriamente fará com que surja a questão: quem arrasa
mais?
Em um almoço: “É claro que o
Chico escreve muito melhor que o Caetano”. Meu primeiro pensamento foi: nunca
havia pensado em colocar os dois em um ranking, e nunca foi óbvio para mim que,
é claro, um era bem melhor que o
outro.
A tal da comparação. É um
vício. A gente não consegue falar bem de um sem deixar de usar outro como
inferior em relação àquele primeiro. Por quê?
Falando sobre todos esses aí,
que citei, especificamente: acho-os complementares. E, pensando bem, será que
não somos, todos nós, complementares? Diria que sim, que cada artista “resolve”
uma ânsia específica, preenche um vazio específico. E desperta algo diferente
em cada um. Não tem como viver se alimentando de um só artista. São necessários
muitos, vários, para levarmos a vida. Muitos cineastas, muitos escritores,
muitos músicos. Faz algum sentido compará-los?
Mais uma vez me ponho a pensar
o que achamos de nós mesmos quando colocamos, por exemplo, Djavan e Milton
Nascimento – ou qualquer outros dois artistas, escolhe aí – em comparação. Ao
diminuirmos Djavan, o que isso quer dizer? Será que queremos, de qualquer
jeito, fazer com que ele pareça um artista meia boca (ou não tão bom quanto
Milton, e isso já o torna menos digno de respeito graças à nossa opinião)? E
nós, que tipo de artista somos? Tão prolíficos quanto Djavan, será? Ok, agora
sou eu quem nos está comparando com Djavan. Olha o vício...
As afinidades estão aí e sempre
estiveram. Da mesma forma como nos identificamos mais com aquele amigo, com
aquele familiar, com aquela colega de trabalho, nos identificamos mais com
aquele artista. Isso quer dizer que aqueles com os quais não me identifico tanto
são piores? Se assim for, só posso concluir que minha opinião é a opinião mais
válida do planeta. Se ela tem o poder de discernir o que é bom e o que é ruim,
o que está em 1º, 2º e 3º lugar no pódio etc., então realmente eu sou o
parâmetro de tudo. Pena que o colega ali da esquina também pensa assim, e o
ranking dele está completamente diferente do meu (quem ele pensa que é?). E
dá-lhe tentativa de conversão; dá-lhe deixar florescer o
missionário/colonizador nosso de cada dia. Prepotência que todos nós tivemos ou
ainda temos, mesmo que só às vezes...
O psicólogo Antonio Roberto
Soares, em um texto bem interessante, afirma: “É imensa a carga de comparação a
que somos diariamente submetidos. É uma força tão imensa que poucas vezes nos
damos conta dela. Tão imersos estamos nesse processo que, infelizmente, talvez
jamais tenhamos refletido sobre esta estrutura que penetrou e continua
penetrando todo o nosso jeito de existir na vida”. Acredito piamente que a
maioria de nós nunca tenha pensado a fundo sobre o assunto, apesar de vivermos
essa realidade desde que nascemos. É algo que parece natural. Eu, com 35 anos,
ando pensando nisso a fundo apenas agora. Até aí, quanto estrago já foi feito?
Uma vida inteira crendo que existem melhores e piores não será rapidamente
substituída por uma vida onde se entende que cada um tem seu próprio valor, que
ninguém é melhor que ninguém etc. Haja paciência para entender os próprios
tropeços e o próprio tempo de amadurecimento.
Esses dias li A arte de pedir, da cantora Amanda
Palmer, e em um dos trechos deste livro sobre generosidade, confiança e o mundo
artístico em geral, ela diz: “Vejam os meios de comunicação: uma hora
endeusamos os artistas, no minuto seguinte os demonizamos. Os artistas
interiorizam isso e perpetuam o ciclo; eles fazem isso uns com os outros e a si
mesmos.” Me interessa muito pensar no que nós fazemos uns com os outros. E me
interessa, muito, saber o que é que nós reproduzimos a partir da mídia (bem
mais do que saber o que é que a mídia fala). E é inevitável, então, avaliar
esse vício comparativo.
Como produtos que somos desta
sociedade competitiva, fazemos comentários até amigáveis, mas repletos de
comparações ou de diminuições. “Seu CD é ótimo; as letras claramente não são
escritas por poetas – sou poeta, sei do que falo –, mas as músicas são muito
boas”; “Quero um autógrafo! Mas da próxima vez me chame para fazer a arte
gráfica, tá? – sou designer, sei do que falo”; “Sua voz é muito bonita, apesar de pequena e com pouca potência”; e mais
centenas de frases que encheriam um livro.
Sempre usei a comparação como
modo de avaliar os outros e a mim mesma. Não me fez/faz nada bem. Além de criar
a famosa inveja, produz também uma eterna postura de vítima, onde o elogio a
outrem é um ataque a você (cada palavra é
uma flecha). Essa grande ilusão de importância (“todos estão contra mim”),
por sua vez, cria também uma postura extremamente desconfiada, sempre com um pé
atrás. A roda viva da comparação é tóxica demais e nos envenena, sempre, com o
terror de uma possível inferiorização.
Conseguiremos, algum dia,
reconhecer nosso próprio valor, e consequentemente dispensaremos o regozijo com
a “falta de habilidade” do próximo (ou o que quer que a gente queira acreditar
que falte nele)? Conseguiremos, sem falsa modéstia – que talvez seja quase tão
nociva quanto a comparação –, ter serenidade em relação a nosso próprio modus operandi? Teremos aquela convicção positiva que nos ajudará a não
nos importarmos tanto nem com a vida dos outros, comparando-os, medindo seus
valores, nem com as opiniões quase sempre equivocadas que terceiros têm em
relação a nós? Estes são atributos que consigo observar em algumas pessoas
próximas a mim, e essa forma de tocar a vida me inspira bastante.
Para terminar, uma boa dica que
o já citado psicólogo dá, em seu texto: “Existe um tipo de comparação com a qual não estamos
acostumados, que normalmente não fazemos e, se a fizermos, nós sairemos do
processo da inveja: é a autocomparação, a comparação conosco mesmos. (...) Estamos
hoje piores ou melhores do que éramos ontem? Em termos sociais, psicológicos,
financeiros, espirituais, estamos melhores ou piores do que estávamos há algum
tempo atrás?”. O que sinto é que quando pratico a autocomparação acabo tendo um olhar bem mais generoso comigo. Me compreendo, vejo meus avanços e me sinto mais animada, estimulada a continuar fazendo o que faço. Não prego a eliminação do senso crítico (uma das coisas mais importantes que podemos desenvolver), mas a tranquilidade para fazermos nossos trabalhos e atividades sem nos preocuparmos se terceiros estão fazendo aquilo “com muito mais competência” do que nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário