Os últimos dias, como sabemos, foram muito
estranhos.
É inevitável questionar a toda hora,
intimamente, o que está acontecendo com o país. É inevitável lembrar,
frequentemente, da quantidade de golpes que o Brasil vem sofrendo - de forma explícita - desde o
início de 2016. Como lidar com tudo isso?
Pessoalmente, não tenho o menor desejo de me
envolver com a política de forma partidária. Procuro ler sobre, discutir sobre, e ver filmes e palestras a respeito da política que me interessa. É esta a forma como
eu lido com este assunto, e não há culpa que me faça pensar de outra forma.
E falo de culpa porque entendo que muitos de nós,
enquanto artistas e cidadãos, tendemos a achar que apenas estando dentro da
política poderíamos fazer algo de efetivo. Pensamos que nossa arte não basta,
que nossos atos cotidianos não servem de nada, nunca servirão. Pensamos que apenas
o macro interessa. A micropolítica seria, portanto, uma grande besteira.
Discordo muito deste pensamento. Acho que a arte
e nossos atos, a relação que temos com quem nos cerca, a atitude para com a
cidade na qual vivemos, tudo isso é de grande importância. Acho, até, que a
micropolítica é nossa única opção, no fim das contas. Para nós, que não temos o menor interesse em um
envolvimento intenso com a política partidária, esse micro é muito.
E penso que a arte faz parte desta
micropolítica. Penso que a arte é, essencialmente, sensibilidade, e não tenho dúvidas de que a política pede exatamente isso. Esse material sensível é o que nos faz compreender o
outro - e não seria a política justamente sobre pensar este outro? Também não tenho dúvidas de que a total falta de ética de tantos e tantos políticos (“tem que ser um que
a gente mata”) tem a ver com não enxergar nada além de si. E se a arte ajudar neste despertar para a existência do outro e também para o que nós, como indivíduos, temos de melhor, como ignorá-la? Como fingir que
não precisamos dela?
Não vejo a arte como algo a
ser endeusado, tampouco. Ela faz parte de todo e qualquer ser humano. É dia a dia, vai costurando nossas ações e nosso imaginário. Está na forma como escolhemos escrever, nos livros que lemos, nas músicas que cantarolamos, nos filmes que
assistimos. Não é exterior, “coisa só pra quem
pode”, coisa que pouca gente entende. E se negar a ver a sensibilidade e o
autoconhecimento que a arte desperta é tão inútil quanto prejudicial.
Quantas obras de arte já me ajudaram a ser uma pessoa mais conectada com o mundo? Quantas obras já me ajudaram a entender coisas básicas sobre a vida? Alguns rápidos exemplos: através do cinema entendi o absurdo da pena de morte (Dead man walking e The exonerated), a influência nefasta da propaganda infantil (Muito além do peso), a importância do
humor mirar o poderoso, e não o oprimido (O
riso dos outros); através do teatro entendi muito sobre a opressão “bondosa”
do patrão brasileiro (O patrão cordial)
e muito também sobre meu corpo (Amir Haddad e Zé Celso); através das artes visuais e
performáticas quase entendi o que é ser um imigrante (Antony Gormley) e o
quanto aquietar a mente é se abrir para bons insights (Marina Abramovich). Através da música fiz meu lar, me senti parte de um mundo
empolgante e incrível, construí meu universo, pude ter um lugar perfeito para
minhas abstrações e prazeres – apenas tudo isso. Já os livros, bem... Com eles
entendi tudo de mais valioso que poderia entender. A escrita literária,
jornalística, biográfica e todas outras possíveis a que tive acesso me
transformaram em alguém com lust for life
(“a vida é boa, há tantas coisas ótimas para se ler”, esse se tornou um
pensamento). Na realidade música e literatura, especificamente, são artes tão
fundamentais em minha vida que fica difícil falar sobre a importância destas em
tudo o que já vivi e vivo...
Esse texto curto é apenas minha forma de mostrar o
quanto penso que não devemos subestimar a arte que fazemos e a arte que
apreciamos. Ela é tão poderosa que, como sabem aqueles que desejam boicotá-la,
chega a ser perigosa (a exposição Queermuseu, a performance de Wagner Schwartz,
a possível extinção do registro profissional da classe, a prisão dos atores de Roda viva, a prisão do palhaço Tico
Bonito... lembram? Apenas gotas em um oceano de repressão às artes). Para
reforçar, finalizo com um pensamento de Eduardo Galeano, registrado no comovente Dias e noites de amor e de guerra:
“Pensei que conhecia umas tantas histórias boas
para contar aos outros, e descobri, e confirmei, que meu assunto era escrever.
Muitas vezes tinha chegado a me convencer de que esse ofício solitário não
valia a pena se um o comparava, digamos, com a militância ou a aventura. Tinha
escrito e publicado muito, mas me faltou coragem para chegar ao fundo de mim e
abrir-me por completo e oferecer isso. Escrever era perigoso, como fazer o amor
quando se faz como deve.”