quarta-feira, 26 de abril de 2017

Outra vez

Há alguns dias tive um sonho. Foi mais um capítulo de um sonho recorrente, que nunca mais havia me visitado à noite. A visita foi ainda mais inesperada porque geralmente eu tinha aquele sonho quando me sentia vulnerável.
E aquele não era o caso, definitivamente: eu estava dormindo na casa de amigos, voltando de uma festa muito divertida, em uma viagem gostosa. Por que havia de novo tido aquele sonho onde eu me sentia frágil e pequena?
Não sei. Mas meu não entender (“ainda isso, uai?”) me levou a querer fazer algo a mais, um pouco mais simbólico, para além de meditar e refletir sobre. Quis transformar aquilo em música. Quis escancarar para mim mesma.
Eu já havia escrito um texto sobre o assunto há alguns meses, e já havia sido uma bela catarse. Após escrevê-lo me senti mais forte, mais resolvida em relação àquele tópico (falando assim me admiro ao perceber, mais uma vez, o quanto as palavras são incríveis: uma simples crônica diminui angústias, como pode?). E peguei exatamente este texto, que servira como mais uma peça do meu grande quebra-cabeças, e com ele fiz a base de uma letra. Fui transformando e fui gostando, vi que era musicável, que dava vontade de criar uma melodia - que bom! Mas o engraçado desse processo é que todo dia eu pegava o violão e tentava ir além, mais um pouquinho. Tentava ajustar aqui, ali. Porque ok, eu havia criado uma melodia, mas não estava gostando, não. Podia ficar melhor, podia ter mais a ver com o assunto, podia ter mais força. Fiquei uns dez dias nessa. Não queria que logo aquele assunto virasse uma canção que não me agradasse. Eu queria ter prazer ao cantar aquilo, ao me ouvir dizendo aquelas palavras.
E quando, lá pelo décimo dia, tive uma ideia melódica mais interessante (na verdade pensei em um ritmo específico que puxou uma melodia bem mais de acordo com o que eu dizia), foi uma sensação muito boa. Foi muito bom cantar com prazer aquela letra, foi muito potente falar de um assunto incômodo e ter prazer ao fazê-lo.
E isso só aconteceu porque fiquei insistindo nisso, porque não larguei de mão. Confesso que já estava achando que aquele processo estava levando tempo demais, enquanto eu precisava estudar e trabalhar, resolver questões “práticas” (sempre elas, a perfeita desculpa para sabotar as questões mais importantes). Mas saí dessa experiência entendendo que o que fiz foi muito pouco, que isso nem sugou tanto assim o meu tempo, e que valeria ter investido ainda mais, se tivesse sido necessário, porque não há nada mais importante do que se entender, se colocar, falar de si consigo, pôr os demônios para fora.

               Ainda não entendi porque sonhei mais um capítulo do sonho recorrente justo em um final de semana tão divertido, ao lado de pessoas que amo (e que me fazem sentir o menos vulnerável possível), em uma cidade de que tanto gosto. Até agora não entendi, e nem sei se vou – e nem sei se isso é importante, por ora. Importante mesmo foi a lição de que a insistência nos leva longe, talvez até exatamente onde queremos ir. E igualmente importante foi transformar o desconforto em delícia – afinal, "o que dentro de ti te mata, fora de ti te salva", já nos disse Amir Haddad.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Outros lugares

Há alguns dias pedi no Facebook uma ajuda aos colegas músicos: queria saber quem poderia indicar lugares para música autoral no RJ. Lugares que fossem bacanas, para fazer um set só, cujo preço de entrada fosse acessível. Houve algumas indicações, mas nada me animou muito. Infelizmente muitas casas eram mais restaurantes/bares do que locais para show. Outros eram um tantinho caros, ou era preciso levar todo o equipamento de som, e por aí vai.
Levantar essa questão me fez pensar em quais lugares eu gosto de tocar. Sem coincidência alguma, são os mesmos lugares que frequento para ver shows e peças. Geralmente são teatros: Sérgio Porto, Centro da Música Carioca, Parque das Ruínas etc.
Mais onde? Bem, quando se improvisa na sala de casa (como no projeto Peña Cultural; como eu já fiz, aqui em casa) acho ótimo. Quando se improvisa em alguma loja (como a Outside e o Plano B faziam; como a Baratos da Ribeiro faz), também acho que dá muito certo. E adorei o Mora Mundo, em SP, que não é teatro, nem loja, mas uma casa de artes: abriga shows, oficinas, saraus, peças...
A essência desses locais que citei é a mesma: na hora do show o foco é o show. E só isso já é ótimo. Mas também há outra questão, um pouco mais ideológica: você não precisa consumir. Você paga a entrada – ou não paga nada, ou colabora voluntariamente; depende do caso –, mas não há pressão para sentar em uma mesa e beber cerveja ou comer uma pizza. Pode consumir, se quiser, mas pode só curtir a apresentação, mesmo. Ninguém vai fazer piadinha caso sua cartela esteja vazia (isso já rolou com uma amiga, numa casa que não existe mais).
É muito bom que existam bares e restaurantes que abrigam shows, pois atendem perfeitamente ao público que curte ouvir uma música enquanto beberica, conversa e relaxa. Apenas eu, como público, tenho outras preferências. E, como artista, prefiro não colocar as pessoas que vêm prestigiar meu show em uma situação onde, além de pagar uma bela grana para entrar, elas talvez ainda se sintam levemente pressionadas a consumir algo. Depois de ter feito muitas apresentações em locais assim, entendo que prefiro fazer de outra forma. Sem culpas. 
Quando eu pedi sugestões de locais aos colegas músicos eu havia acabado de fazer dois shows próximos um do outro, e estava querendo manter o ritmo. Mas, dadas as perspectivas não muito animadoras, deixei rolar (pois, além de tudo, fechar e produzir shows é um grande gasto de energia – tem que valer a pena!) e foquei em outras coisas. Daí acabei me questionando: é tão importante assim me apresentar ao vivo? Ou será que é mais uma ansiedade, uma pressão interna para mostrar serviço? Ainda estou pensando sobre, mas cheguei a cogitar a possibilidade de ser uma artista cujo foco seria a criação, além da gravação de vídeos e faixas. Daí o que pintasse de convite para show, ótimo, eu faria com prazer. Será que seria uma boa fazer isso? Tenho minhas dúvidas, porque não posso negar que as apresentações dão uma alegria muito grande  e, quando correm bem, dão um belo gás para se seguir em frente. Mas foi bom perceber que há várias formas de operar como artista, várias possibilidades. Cada um tem que descobrir como fica melhor para si. 
Ah, duas semanas depois de eu ter jogado a pergunta sobre lugares para tocar, o artista Lineker criou e divulgou uma tabela colaborativa com o mapeamento dos locais para tocar no Brasil. Na tabela são inseridos o contato do local, a descrição da casa, a forma como funciona o pagamento, o tipo de show que a casa abriga etc. Músicos do Brasil todo podem se beneficiar das informações e inserir mais locais. 
Como disse o colega Pedro Araújo, discorrendo sobre minha pergunta no Facebook, "quem gosta da gente é a gente" (adorei essa frase): ou encontramos soluções criativas para continuarmos fazendo arte ou vamos ficar num desânimo coletivo, todos mal e ninguém se ajudando. Melhor colocar a empatia em prática, como Lineker o fez, exemplarmente.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Outro idioma

No dia 12 de abril de 2016, ao ouvir a campainha tocando, pensei: “ferrou!”. Deu nervoso, mas fui atender a porta, pois não tinha mais saída. Era me assumir ou me assumir.
Muito frisson por nada, diria o Bardo, mas aquela seria a primeira vez que eu mostraria a alguém minhas músicas. Quem chegava era o Pedro, guitarrista que vinha ensaiar comigo. Havíamos combinado aquele ensaio-conversa três semanas antes, na inauguração do estúdio de um amigo.
Embora pareça besteira, aquele dia foi, sim, muito significativo para mim. Aliás, entendi há pouco tempo que as coisas mais importantes para nós, nossas maiores conquistas, podem parecer completas besteiras para terceiros. Mas desde 2007 eu não compunha praticamente nada, não criava sozinha (viciada que estava em compor em cima de harmonias que o guitarrista de minha antiga banda fazia – depois de extinta a banda, tornei-me intérprete). Apenas em 2015 voltei a criar. E creio que todos saibam como é difícil mostrar algo para outra pessoa pela primeira vez. Uma poesia, uma coreografia, uma decoração, até mesmo uma ideia: é estranho sair daquele âmbito onde só você, até então, avaliava algo. Sentimo-nos um pouco estranhos, nus. Essa solidão de criar algo só seu e saber que ninguém nunca fez nada exatamente igual àquilo pode dar bastante insegurança. E a crença (irreal) de que algo que fizemos talvez não se comunique com ninguém também não é nada reconfortante.
Exatamente por isso a sensação que veio depois dessa primeira exibição foi muito boa. Se agora estava me sentindo ainda mais vulnerável, por não estar respaldada pelas composições de terceiros, ao mesmo tempo percebi que estava muito mais livre. Não apenas por estar quebrando uma barreira, um bloqueio de me mostrar como autora das músicas que cantava, mas também por perceber que estava sendo prazeroso fazer aquilo. Mesmo mostrando as canções timidamente para Pedro, eu estava lá, tocando o violão e cantando, e até gostando delas. 
Desde lá fomos ensaiando uma ou duas vezes por semana, e os dias de ensaio foram se tornando os dias mais interessantes da semana. Porque aquele era o momento em que eu estava fazendo aquilo que eu precisava fazer. Sem enrolar, sem ficar procurando obrigações apenas para fugir do que me dava medo e era essencial enfrentar. 
(Aliás, sobre enrolar e não ir direto ao ponto, sempre lembro dos versos de Karina Buhr em "Guitarristas de Copacabana": "Por falta de consciência tranquila / Passou o dia cozinhando arroz na panela / Que pressão! / E agora estragou os versos / E ainda explodiu o fogão" – provavelmente Karina estava falando sobre outra coisa, mas fato é que sempre uso estes versos para me lembrar do quanto ficamos fazendo tarefas banais para não enfrentar nossas obrigações mais difíceis.)
Dei o nome deste projeto de Outra língua. Nome do show, do possível CD, deste blog, também do possível livro. Porque agora me sinto falando outro idioma, um pouco mais difícil, ficando naquela situação típica de quem ainda se sente inseguro em uma língua estrangeira: muita vulnerabilidade, mas também uma baita satisfação por estar superando a vergonha e fazendo algo difícil. 

E por isso resolvi fazer um outro blog, ao invés de continuar atualizando o antigo. Aquele, iniciado, em 2013, é um blog que eu associo muito ao universo de uma intérprete. Este aqui terá a mesma essência – falar sobre música através de minhas experiências –, mas acolherá também questões ligadas à criação e seus desafios. Ou, ao menos, essa é a ideia inicial.