sábado, 14 de outubro de 2017

Elas

                  Divulgação da edição Inconfidentes (Mariana/Ouro Preto) do Sonora


              Ano passado, em agosto, tive a alegria de conhecer o festival Sonora. Na edição de São Paulo, com Dory de Oliveira e Orquídeas do Brasil, filmei um pouco dos dois shows – houve um chamamento para voluntárias em fotografia e vídeo, e lá fui eu. Foram dois shows incríveis. E foi muito importante conhecer de perto essa iniciativa, então em sua primeira edição.
Mas, um pouco antes disso, eu estava já me sentindo mais unida a outras mulheres compositoras, graças ao grupo Mulheres Criando, criado no Facebook para servir de reunião e diálogo entre as compositoras. O grupo surgiu após a hashtag criada pela musicista Deh Mussulini ter se espalhado pela rede, em fevereiro do mesmo ano (2016). O “aviso” #mulherescriando havia sido uma forma de mostrar a grande quantidade de mulheres compondo suas próprias canções, e foi também uma forma de incentivá-las a mostrarem, em vídeos que acompanhavam a hashtag, essas composições. (Vale dizer que, além do Sonora, a mostra Mulheres Criando surgiu também daí, movimentando shows de mulheres em cidades como BH, principalmente, mas também em SP e no RJ.)
No dia 2 de setembro, há um mês e meio, toquei no festival Sonora, na edição Inconfidentes, em Mariana/MG. Dividi o palco com Ludmilla Rainha, Karine Campos e Amanda Gasparetto, e tudo foi harmônico e prazeroso do início ao fim, em cada detalhe. Fiquei na casa de Mo Maiê – uma das compositoras organizadoras do evento – e fui muito bem recebida. Os três técnicos do Sesi Mariana foram solícitos e amigos. Aliás, foi bacana chegar para a passagem de som e ver que um destes três profissionais, a técnica de palco, era mulher – parece um detalhe, mas para mim isso deixou claro que ali as coisas eram diferentes e fora da caixa.
Fiquei ainda com mais vontade de escrever sobre o Sonora após ver um vídeo onde LaBaq, idealizadora do projeto junto com Deh, falava sobre a importância das mulheres se sentirem seguras de mostrarem e cantarem suas próprias canções. Achei essa fala crucial. Porque são iniciativas como essas que me fazem, de fato, ficar mais à vontade para mostrar o que faço, visto que fiquei bastante tempo cantando o que os outros compunham. Sendo que estes "outros" eram quase sempre homens, é claro.
E as mulheres? Por que só ultimamente venho conhecendo / prestando atenção naquilo que as mulheres compõem? Algumas sempre estiveram aí, é claro. Mas outras apenas ultimamente começaram a mostrar suas criações (como eu). O resultado é uma grande onda de mulheres criando. E criando coisas lindas, que me fazem pegar o violão e cantar e também me inspiram a compor.
Estamos sim mais confiantes, mais felizes, mais à vontade com nós mesmas e mais orgulhosas daquilo que produzimos. Por isso a fala de LaBaq foi certeira. Ganhamos a cada dia mais confiança, e por isso estamos criando cada vez mais.
Lembrei também da questão do instrumento. Vejo que muitas de nós adoramos tocar um violão, um teclado, uma percussão etc. Mas quantas de nós conseguimos vencer a barreira da própria dúvida e nos tornamos instrumentistas? Ou: quantas de nós, mesmo sem a intenção de nos tornarmos instrumentistas, aprendemos algum instrumento? Muitas, sem dúvidas. Mas muitas não se arriscaram nesta seara, como se instrumento fosse coisa de homem. Eu, por exemplo, sempre vi a coisa assim, mesmo tocando desde cedo. Nunca me dediquei de verdade. Por preguiça, com certeza, e talvez por saber que não era exatamente aquilo o que eu mais amava (o que eu mais amei sempre foi cantar, mesmo sem assumir). Mas será que a pouca quantidade de guitarristas mulheres ao meu redor fez com que que eu achasse que aquilo não era muito para mim? Não sei. Talvez! O que sei é que sempre que vi uma mulher tocando bem, segura de si, linda, achei aquilo "diferente". Mesmo hoje, quando vejo mais e mais cantoras tocando muito bem, ainda não me acostumei totalmente com isso, me parece ainda uma novidade (o que está longe de ser verdade, vide Badi Assad, Joyce, Nara Leão e muitas outras). Hoje há tantas cantoras-violonistas incríveis, como Clara Gurjão, Michele Leal, Luísa Lacerda, Deh Mussulini, e mesmo sabendo disso parece que a minha ficha ainda não caiu totalmente.
Quantas mulheres existem por aí com o desejo de aprender algum instrumento e se achando incapazes disso? Ou achando que já passou a hora, que não dá mais tempo (aquele papo chato de que é na infância que tudo começa, senão, sem chances)? Quantas não realizarão este sonho? Quantas nunca matarão esta vontade? Espero que cada vez menos. E certamente estas iniciativas de união feminina servem para ajudar neste sentido também, promovendo o encontro de mulheres compositoras-cantoras, instrumentistas, produtoras de áudio, técnicas de som etc.
                      Vejo que não dá para falar em Sonora e Mulheres Criando sem entender que tudo isso que aconteceu e acontece, essa grande movimentação de shows e essa grande movimentação interna, de mulheres se sentindo mais capazes, acontece graças ao feminismo. E o feminismo, lamentavelmente, ainda é visto como algo risível, algo que mesmo a galera de esquerda pode rir, fazer piada, classificar como sendo um tópico “chato”. Incomoda, e muito. E é triste ver até mesmo algumas mulheres entendendo errado e achando que trata-se de uma guerra aos homens – querendo, assim, mostrar que não "precisam disso", afinal são muito  amigas dos  homens. Amigas dos homens todas nós somos, uai. A questão não é essa. É buscar mais liberdade, é lutar para eliminar quaisquer repressões acerca de nossas vidas, nossos corpos, nossas profissões, hábitos etc. Se alguém se sente incomodado com o feminismo, pode ser porque toda quebra de estruturas sedimentadas dá medo, mesmo; mas também pode ser por gostar da clássica competição Clube do Bolinha x Clube da Luluzinha; por medo de não conseguir mais dominar aquelas que há tempo são dominadas; ou por medo de ser desmascarado em suas péssimas ações machistas/violentas – essa última opção aí foi a que reinou durante a hashtag #meuamigosecreto, lembram? O que vi de homem achando aquilo um absurdo, se sentindo acuado e vestindo a carapuça não está no gibi. Que bandeira! (“O machismo é o medo dos homens das mulheres sem medo”, já dizia Eduardo Galeano.)
Mas, voltando: eu sei que a troca entre mulheres ainda pode ser algo difícil e pode dar um pouco de receio/desconfiança. Por inúmeras razões às vezes o encontro e a amizade não acontecem. Mas é vital tentarmos quebrar ao máximo essa competitividade que, digo sem medo de errar, não é algo exclusivo do universo feminino, mas da sociedade em geral. E, na verdade, o que mais tenho visto nesta "aterradora" (hahah) onda feminista que estamos vivendo são mulheres se ajudando a torto e a direito, em um companheirismo muito forte e eficaz. Por isso usei a palavra "aterradora" para falar do que vem acontecendo: mulheres se unindo é algo que não sei se alguém consegue frear. Depois que a gente descobre que pode se ajudar, ferrou (no melhor dos sentidos).

domingo, 1 de outubro de 2017

Hierarquizar bem para hierarquizar sempre




              Onde você guarda sua vontade de hierarquizar as pessoas e as coisas?
Em quais momentos você utiliza seu conhecimento para rir de quem desconhece algo que você conhece?
Onde você guarda seu elitismo, aquele elitismo tão peculiar que você nem desconfia que ele seja isso – um elitismo?
Em qual momento você concluiu que o vrau é a palavra de ordem? Em qual momento você descobriu o inenarrável prazer de dar um fora, de ganhar uma discussão, de esculachar, de sair por cima da carne seca, radiante por ter ferido alguém, radiante por ter saído vitorioso de um bate boca?
Eu sei, estou falando de várias e diferentes coisas. Mas para mim todas estas coisas enumeradas se encontram em um ponto: a crença nos pódios.
Um melhor que o outro. Um pior que outro. Nunca uma relação de respeito e igualdade. Nunca acreditar nas qualidades de cada um, na personalidade única de cada um, de entender o outro dentro do contexto que o envolve. Nunca uma vontade de diálogo. Apenas uma vontade de mostrar: eu consegui. Você, não. Não foi dessa vez para você (“chola mais”, “desculpa, tá?” e afins).
Relações de puxa-saquismo ou desrespeito puro. Achar que aquele ídolo ali é inatingível e só tem o direito de ser perfeito, nada menos que isso. E achar que o ídolo do outro tem que ser execrado, afinal ele é um merda (a seu ver). E é preciso convencer (=catequizar). Não é possível simplesmente aceitar um gosto musical diferente do seu, por exemplo. Ou eu falo cheio de raiva sobre aquele músico que não aprecio – revelando muito mais sobre mim do que sobre quem ataco –, ou fico numa infantilidade lamentável de achar que a pessoa que idolatro é perfeita (e ai dela se me decepcionar!).
Quando e onde surgiu esse mecanismo que faz com que elogiemos alguém automaticamente colocando outra pessoa para baixo? “Nossa, fulana é maravilhosa, muito melhor que sicrana, que é péssima.” Não tem como elogiar sem atacar terceiros? Ou, outra opção: não tem como só criticar este terceiro, mesmo, só que sem disfarces? Vejo que raras são as vezes em que queremos sinceramente exaltar aquele que estamos exaltando. Queremos diminuir o outro, e o elogiado é só um elemento de comparação, pretexto para que o veneno possa ser destilado.
Lembro-me vez ou outra da Anitta. Não sei por que, mas ela acabou sendo o exemplo-mor, para mim, dessa relação binária que geralmente se tem com o outro (ou se ama, ou se odeia).
Exemplifico: certo dia aquele repórter lá, daquela emissora lá, foi entrevistar a cantora, após a mesma ter se apresentado com Caetano e Gil. O sujeito resolveu mostrar sua insatisfação por Anitta (alguém que nasceu artisticamente no mundo pop) ter estado ao lado dos medalhões. Daí o indivíduo, tosca e desrespeitosamente, insinuou que ele, repórter, estava muito mais envolvido com a MPB do que ela. O programa foi transmitido ao vivo, e nem assim o cara segurou a onda de sua implicância. Fiquei pensando no quanto é chato que se ofereçam sempre duas opções em relação a Anitta, especificamente (mas também a muitos outros artistas): venerar e falar que ela lacra o tempo todo, em tudo o que faz (ajudando a sedimentar ainda mais a péssima cultura da idolatria); ou desprezar e tratar com arrogância, ao vivo, para que o Brasil inteiro veja.
Não tem como ter um meio termo, não? Não tem como respeitar, sempre, seja quem for? Independentemente da música, de seu gosto, de sua vontade de espezinhar? Não tem como praticar este exercício?
Vejo na militância – seja nas redes sociais, nas ruas, ou até mesmo em programas de TV – um fenômeno parecido. É uma torcida para ver quem dá o fora maior no outro. (Ok, há momentos em que talvez seja necessária uma sacudidela, mas não pelo fora bem dado, ou pela “cara de idiota” que o sacudido fez, e sim pela mensagem que precisa ser passada. Quando alguém se compraz com alguma – suposta ou real – humilhação, acaba só mostrando seu sadismo, mesmo.) E dentro desta militância que menciono, nós queremos sempre estar ao lado daqueles que consideramos os vencedores. Parecemos aquela ganguezinha de adolescentes, aquele grupelho que acha que arrasa porque mete medo nos mais fraquinhos, mais novos, mais bobos. Não somos corajosos, muito pelo contrário: somos apenas covardes satisfeitos em intimidar quem não nos responderá agressivamente, jamais. Ou: ficamos felizes em intimidar aqueles que responderão agressivamente, sim, mas com pouco embasamento, e aí é que o vrau vai vir caprichado, com direito a esculacho sócio-cultural e tudo. A militância vaidosa adora humilhar os já “facilmente humilháveis” (aos olhos elitistas dos lacradores).
Esse é o outro elitismo do qual estou falando. Não precisa ser sobre grana, família, tradição. Pode ser bem mais disfarçado que isso.
Elitismo pode ser sua crença de que aquele ali é ignorante e você pode rir dele.
Elitismo pode ser a sua convicção de que aquele grupo de teatro ali, que você não gosta, não merece respeito (como se respeito fosse artigo a ser gasto apenas com alguns, selecionados a dedo). Elitismo pode ser menosprezar internamente quem você considera feio. Pode ser fazer piadinhas sobre o outro sempre, como modus operandi, em uma tentativa inútil de se mostrar superior. Daí você faz tudo isso e pensa que o simples fato de não ter grana te livra de ser elitizado, mas não livra, nem um pouco. Toda vez que você fala com desdém do outro, da arte do outro, de qualquer coisa do outro, sua imodéstia e vaidade insaciáveis se confirmam.
Elitismo pode ser sua mania, prezado historiador pop, de rir de quem o admira, de ironizar quem pede conselhos a você, de considerar piores aqueles que gostariam de debater contigo em sua rede social (aquela que você despreza e tanto usa). Bom, neste caso aqui acabei falando, sem querer, de elitismo tradicional, mesmo – elitismo queijos e vinhos, elitismo jantar em Curitiba. 
Elitismo pode ser essa ânsia insaciável por poder. Poder, e não grana: poder é muito pior do que grana (o dinheiro é apenas uma das formas de poder). E esse poder é tudo o que o elitista mais ama, daí seu desdém, sua arrogância, seu fingir não ver, seu fingir não saber de nada que não seja ele mesmo e seu mundo. Todo o resto é risível (digo: os outros, aqueles que não fazem parte de sua gangue). Só vale saber do mundo do outro se for para ter elementos para diminuí-lo.
O quanto estes pódios não minam nossa alegria? O quanto esta competitividade louca não nos impede de levarmos várias empreitadas adiante? O quanto este pensamento prejudica nossa espontaneidade? Penso neste assunto com muita frequência – até mesmo porque me vejo como um grande retrato deste sistema que estimula a crença em 1º, 2º e 3º lugar – e percebo, sem dificuldades, as consequências deste sistema de pódios em mim. Tenho as sequelas (reversíveis, é claro, mas graves) de uma sociedade que vive de comparações e medições: quem é melhor, quem é pior? “Este dá um banho naquele, sem dúvidas”, “este aqui, coitado, certamente é o último da lista”. Passei uma vida inteira comparando e sendo comparada, diminuindo e sendo diminuída, elogiando um para criticar outro. Não ganhei nada com isso, só perdi meu precioso tempo com raivas e picuinhas. E ao mesmo tempo que é revoltante perceber que isso é só uma farsa estimulada por tudo, absolutamente tudo o que nos cerca (jornais, TV, outdoors, publicidade, revistas de fofoca), é ainda mais desagradável ver os amigos e conhecidos caindo nesta mesma lorota.
Conheço pessoas inteiradíssimas sobre política, sociologia, arte etc. acreditando piamente que aquela emissora lá do Cidadão Kane, ela sim, pode legitimar a carreira de um artista. Quando vejo isso percebo o quanto essa emissora é muito, muito mais perigosa do que qualquer político neste país, pois não só consegue engrupir milhões de incautos, mas também contar com a simpatia daqueles que teriam todas as ferramentas necessárias para criticar ferrenhamente suas falácias. Não: na hora de falarmos em “arte”, “cultura” e “entretenimento”, o canal 4 continua sendo o lugar mais incrível no quesito oportunidade, aquele que te credencia como artista “de verdade”. Quando vi artistas independentes babando um ovo animal e inesperado desse conglomerado eu entendi que, infelizmente, nossa autoestima não anda nada bem. Imagina como deve estar a cabeça de alguém que pensa que apenas a TV confere respeitabilidade? Imagina o que deve achar de si um artista independente que, mesmo longe de estar ao alcance de milhares, acredita que apenas quando começar a sair em matérias de jornal é que vai ser um profissional de verdade?
Estamos todos nos sentindo uns lixos, concluo. E lixos que fazem questão de dar o vrau, é claro, para disfarçar um pouco a agonia. Enquanto se puder dar um fora em alguém, haverá esperança.
Uma pena ver que nossos discursos igualitários não nos impedem de sermos iguaizinhos ao Boris Casoy, achando que os garis são piores do que nós... Nós, os seres “qualificadíssimos”, “estudados”, intelectualizados. Cujo intelecto, infelizmente, não serviu para o mais importante: entender o ser humano, o outro, o si mesmo.

Ando fascinada por este assunto – relações de poder e competitividade – e tenho pensado nele sem parar. Porque pude perceber o quanto estes dois elementos são o motor da inveja e do individualismo, e o quanto estes dois últimos são o motor da ansiedade e depressão. Não quero mais fazer parte deste círculo vicioso. E me sinto aliviada quando reflito sobre isso e percebo o quanto se trata de algo imposto, interessante aos jogos de poder: não é algo inevitável e intrínseco, não mesmo. Podemos propor outro tipo de vida, podemos ter o respeito como uma boa base. Basta ter boa vontade (acho que ainda não entendemos muito bem o gigantesco potencial da boa vontade, aliás).
              E aí? Vamos conseguir largar mão do vrau e do escracho como primeira alternativa, sempre, e substituí-los por uma convivência mais harmônica? Ou lacrar ainda é mais importante?