domingo, 1 de outubro de 2017

Hierarquizar bem para hierarquizar sempre




              Onde você guarda sua vontade de hierarquizar as pessoas e as coisas?
Em quais momentos você utiliza seu conhecimento para rir de quem desconhece algo que você conhece?
Onde você guarda seu elitismo, aquele elitismo tão peculiar que você nem desconfia que ele seja isso – um elitismo?
Em qual momento você concluiu que o vrau é a palavra de ordem? Em qual momento você descobriu o inenarrável prazer de dar um fora, de ganhar uma discussão, de esculachar, de sair por cima da carne seca, radiante por ter ferido alguém, radiante por ter saído vitorioso de um bate boca?
Eu sei, estou falando de várias e diferentes coisas. Mas para mim todas estas coisas enumeradas se encontram em um ponto: a crença nos pódios.
Um melhor que o outro. Um pior que outro. Nunca uma relação de respeito e igualdade. Nunca acreditar nas qualidades de cada um, na personalidade única de cada um, de entender o outro dentro do contexto que o envolve. Nunca uma vontade de diálogo. Apenas uma vontade de mostrar: eu consegui. Você, não. Não foi dessa vez para você (“chola mais”, “desculpa, tá?” e afins).
Relações de puxa-saquismo ou desrespeito puro. Achar que aquele ídolo ali é inatingível e só tem o direito de ser perfeito, nada menos que isso. E achar que o ídolo do outro tem que ser execrado, afinal ele é um merda (a seu ver). E é preciso convencer (=catequizar). Não é possível simplesmente aceitar um gosto musical diferente do seu, por exemplo. Ou eu falo cheio de raiva sobre aquele músico que não aprecio – revelando muito mais sobre mim do que sobre quem ataco –, ou fico numa infantilidade lamentável de achar que a pessoa que idolatro é perfeita (e ai dela se me decepcionar!).
Quando e onde surgiu esse mecanismo que faz com que elogiemos alguém automaticamente colocando outra pessoa para baixo? “Nossa, fulana é maravilhosa, muito melhor que sicrana, que é péssima.” Não tem como elogiar sem atacar terceiros? Ou, outra opção: não tem como só criticar este terceiro, mesmo, só que sem disfarces? Vejo que raras são as vezes em que queremos sinceramente exaltar aquele que estamos exaltando. Queremos diminuir o outro, e o elogiado é só um elemento de comparação, pretexto para que o veneno possa ser destilado.
Lembro-me vez ou outra da Anitta. Não sei por que, mas ela acabou sendo o exemplo-mor, para mim, dessa relação binária que geralmente se tem com o outro (ou se ama, ou se odeia).
Exemplifico: certo dia aquele repórter lá, daquela emissora lá, foi entrevistar a cantora, após a mesma ter se apresentado com Caetano e Gil. O sujeito resolveu mostrar sua insatisfação por Anitta (alguém que nasceu artisticamente no mundo pop) ter estado ao lado dos medalhões. Daí o indivíduo, tosca e desrespeitosamente, insinuou que ele, repórter, estava muito mais envolvido com a MPB do que ela. O programa foi transmitido ao vivo, e nem assim o cara segurou a onda de sua implicância. Fiquei pensando no quanto é chato que se ofereçam sempre duas opções em relação a Anitta, especificamente (mas também a muitos outros artistas): venerar e falar que ela lacra o tempo todo, em tudo o que faz (ajudando a sedimentar ainda mais a péssima cultura da idolatria); ou desprezar e tratar com arrogância, ao vivo, para que o Brasil inteiro veja.
Não tem como ter um meio termo, não? Não tem como respeitar, sempre, seja quem for? Independentemente da música, de seu gosto, de sua vontade de espezinhar? Não tem como praticar este exercício?
Vejo na militância – seja nas redes sociais, nas ruas, ou até mesmo em programas de TV – um fenômeno parecido. É uma torcida para ver quem dá o fora maior no outro. (Ok, há momentos em que talvez seja necessária uma sacudidela, mas não pelo fora bem dado, ou pela “cara de idiota” que o sacudido fez, e sim pela mensagem que precisa ser passada. Quando alguém se compraz com alguma – suposta ou real – humilhação, acaba só mostrando seu sadismo, mesmo.) E dentro desta militância que menciono, nós queremos sempre estar ao lado daqueles que consideramos os vencedores. Parecemos aquela ganguezinha de adolescentes, aquele grupelho que acha que arrasa porque mete medo nos mais fraquinhos, mais novos, mais bobos. Não somos corajosos, muito pelo contrário: somos apenas covardes satisfeitos em intimidar quem não nos responderá agressivamente, jamais. Ou: ficamos felizes em intimidar aqueles que responderão agressivamente, sim, mas com pouco embasamento, e aí é que o vrau vai vir caprichado, com direito a esculacho sócio-cultural e tudo. A militância vaidosa adora humilhar os já “facilmente humilháveis” (aos olhos elitistas dos lacradores).
Esse é o outro elitismo do qual estou falando. Não precisa ser sobre grana, família, tradição. Pode ser bem mais disfarçado que isso.
Elitismo pode ser sua crença de que aquele ali é ignorante e você pode rir dele.
Elitismo pode ser a sua convicção de que aquele grupo de teatro ali, que você não gosta, não merece respeito (como se respeito fosse artigo a ser gasto apenas com alguns, selecionados a dedo). Elitismo pode ser menosprezar internamente quem você considera feio. Pode ser fazer piadinhas sobre o outro sempre, como modus operandi, em uma tentativa inútil de se mostrar superior. Daí você faz tudo isso e pensa que o simples fato de não ter grana te livra de ser elitizado, mas não livra, nem um pouco. Toda vez que você fala com desdém do outro, da arte do outro, de qualquer coisa do outro, sua imodéstia e vaidade insaciáveis se confirmam.
Elitismo pode ser sua mania, prezado historiador pop, de rir de quem o admira, de ironizar quem pede conselhos a você, de considerar piores aqueles que gostariam de debater contigo em sua rede social (aquela que você despreza e tanto usa). Bom, neste caso aqui acabei falando, sem querer, de elitismo tradicional, mesmo – elitismo queijos e vinhos, elitismo jantar em Curitiba. 
Elitismo pode ser essa ânsia insaciável por poder. Poder, e não grana: poder é muito pior do que grana (o dinheiro é apenas uma das formas de poder). E esse poder é tudo o que o elitista mais ama, daí seu desdém, sua arrogância, seu fingir não ver, seu fingir não saber de nada que não seja ele mesmo e seu mundo. Todo o resto é risível (digo: os outros, aqueles que não fazem parte de sua gangue). Só vale saber do mundo do outro se for para ter elementos para diminuí-lo.
O quanto estes pódios não minam nossa alegria? O quanto esta competitividade louca não nos impede de levarmos várias empreitadas adiante? O quanto este pensamento prejudica nossa espontaneidade? Penso neste assunto com muita frequência – até mesmo porque me vejo como um grande retrato deste sistema que estimula a crença em 1º, 2º e 3º lugar – e percebo, sem dificuldades, as consequências deste sistema de pódios em mim. Tenho as sequelas (reversíveis, é claro, mas graves) de uma sociedade que vive de comparações e medições: quem é melhor, quem é pior? “Este dá um banho naquele, sem dúvidas”, “este aqui, coitado, certamente é o último da lista”. Passei uma vida inteira comparando e sendo comparada, diminuindo e sendo diminuída, elogiando um para criticar outro. Não ganhei nada com isso, só perdi meu precioso tempo com raivas e picuinhas. E ao mesmo tempo que é revoltante perceber que isso é só uma farsa estimulada por tudo, absolutamente tudo o que nos cerca (jornais, TV, outdoors, publicidade, revistas de fofoca), é ainda mais desagradável ver os amigos e conhecidos caindo nesta mesma lorota.
Conheço pessoas inteiradíssimas sobre política, sociologia, arte etc. acreditando piamente que aquela emissora lá do Cidadão Kane, ela sim, pode legitimar a carreira de um artista. Quando vejo isso percebo o quanto essa emissora é muito, muito mais perigosa do que qualquer político neste país, pois não só consegue engrupir milhões de incautos, mas também contar com a simpatia daqueles que teriam todas as ferramentas necessárias para criticar ferrenhamente suas falácias. Não: na hora de falarmos em “arte”, “cultura” e “entretenimento”, o canal 4 continua sendo o lugar mais incrível no quesito oportunidade, aquele que te credencia como artista “de verdade”. Quando vi artistas independentes babando um ovo animal e inesperado desse conglomerado eu entendi que, infelizmente, nossa autoestima não anda nada bem. Imagina como deve estar a cabeça de alguém que pensa que apenas a TV confere respeitabilidade? Imagina o que deve achar de si um artista independente que, mesmo longe de estar ao alcance de milhares, acredita que apenas quando começar a sair em matérias de jornal é que vai ser um profissional de verdade?
Estamos todos nos sentindo uns lixos, concluo. E lixos que fazem questão de dar o vrau, é claro, para disfarçar um pouco a agonia. Enquanto se puder dar um fora em alguém, haverá esperança.
Uma pena ver que nossos discursos igualitários não nos impedem de sermos iguaizinhos ao Boris Casoy, achando que os garis são piores do que nós... Nós, os seres “qualificadíssimos”, “estudados”, intelectualizados. Cujo intelecto, infelizmente, não serviu para o mais importante: entender o ser humano, o outro, o si mesmo.

Ando fascinada por este assunto – relações de poder e competitividade – e tenho pensado nele sem parar. Porque pude perceber o quanto estes dois elementos são o motor da inveja e do individualismo, e o quanto estes dois últimos são o motor da ansiedade e depressão. Não quero mais fazer parte deste círculo vicioso. E me sinto aliviada quando reflito sobre isso e percebo o quanto se trata de algo imposto, interessante aos jogos de poder: não é algo inevitável e intrínseco, não mesmo. Podemos propor outro tipo de vida, podemos ter o respeito como uma boa base. Basta ter boa vontade (acho que ainda não entendemos muito bem o gigantesco potencial da boa vontade, aliás).
              E aí? Vamos conseguir largar mão do vrau e do escracho como primeira alternativa, sempre, e substituí-los por uma convivência mais harmônica? Ou lacrar ainda é mais importante?

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