Onde você guarda sua vontade de hierarquizar as pessoas e as coisas?
Em
quais momentos você utiliza seu conhecimento para rir de quem desconhece algo
que você conhece?
Onde
você guarda seu elitismo, aquele elitismo tão peculiar que você nem desconfia
que ele seja isso – um elitismo?
Em
qual momento você concluiu que o vrau é a palavra de ordem? Em
qual momento você descobriu o inenarrável prazer de dar um fora, de ganhar uma
discussão, de esculachar, de sair por cima da carne seca, radiante por ter
ferido alguém, radiante por ter saído vitorioso de um bate boca?
Eu
sei, estou falando de várias e diferentes coisas. Mas para mim todas estas
coisas enumeradas se encontram em um ponto: a crença nos pódios.
Um
melhor que o outro. Um pior que outro. Nunca uma relação de respeito e
igualdade. Nunca acreditar nas qualidades de cada um, na personalidade única de
cada um, de entender o outro dentro do contexto que o envolve. Nunca uma
vontade de diálogo. Apenas uma vontade de mostrar: eu consegui. Você, não. Não
foi dessa vez para você (“chola mais”, “desculpa, tá?” e afins).
Relações
de puxa-saquismo ou desrespeito puro. Achar que aquele ídolo ali é inatingível
e só tem o direito de ser perfeito, nada menos que isso. E achar que o ídolo do
outro tem que ser execrado, afinal ele é um merda (a seu ver). E é preciso
convencer (=catequizar). Não é possível simplesmente aceitar um gosto musical
diferente do seu, por exemplo. Ou eu falo cheio de raiva sobre aquele músico
que não aprecio – revelando muito mais sobre mim do que sobre quem ataco –, ou
fico numa infantilidade lamentável de achar que a pessoa que idolatro é
perfeita (e ai dela se me decepcionar!).
Quando
e onde surgiu esse mecanismo que faz com que elogiemos alguém automaticamente
colocando outra pessoa para baixo? “Nossa, fulana é maravilhosa, muito melhor
que sicrana, que é péssima.” Não tem como elogiar sem atacar terceiros? Ou,
outra opção: não tem como só criticar este terceiro, mesmo, só que sem
disfarces? Vejo que raras são as vezes em que queremos sinceramente exaltar
aquele que estamos exaltando. Queremos diminuir o outro, e o elogiado é só um
elemento de comparação, pretexto para que o veneno possa ser destilado.
Lembro-me
vez ou outra da Anitta. Não sei por que, mas ela acabou sendo o exemplo-mor,
para mim, dessa relação binária que geralmente se tem com o outro (ou se ama,
ou se odeia).
Exemplifico:
certo dia aquele
repórter lá, daquela emissora lá, foi entrevistar a cantora, após a
mesma ter se apresentado com Caetano e Gil. O sujeito resolveu mostrar sua
insatisfação por Anitta (alguém que nasceu artisticamente no mundo pop) ter
estado ao lado dos medalhões. Daí o indivíduo, tosca e desrespeitosamente,
insinuou que ele, repórter, estava muito mais envolvido com a MPB do que ela. O
programa foi transmitido ao vivo, e nem assim o cara segurou a onda de sua
implicância. Fiquei pensando no quanto é chato que se ofereçam sempre duas
opções em relação a Anitta, especificamente (mas também a muitos outros
artistas): venerar e falar que ela lacra o tempo todo, em tudo o que faz
(ajudando a sedimentar ainda mais a péssima cultura da idolatria); ou
desprezar e tratar com arrogância, ao vivo, para que o Brasil
inteiro veja.
Não
tem como ter um meio termo, não? Não tem como respeitar, sempre, seja quem for?
Independentemente da música, de seu gosto, de sua vontade de espezinhar? Não
tem como praticar este exercício?
Vejo
na militância – seja nas redes sociais, nas ruas, ou até mesmo em programas de
TV – um fenômeno parecido. É uma torcida para ver quem dá o fora maior no
outro. (Ok, há momentos em que talvez seja necessária uma sacudidela, mas não pelo
fora bem dado, ou pela “cara de idiota” que o sacudido fez, e sim pela mensagem
que precisa ser passada. Quando alguém se compraz com alguma – suposta ou real
– humilhação, acaba só mostrando seu sadismo, mesmo.) E dentro desta militância
que menciono, nós queremos sempre estar ao lado daqueles que consideramos os
vencedores. Parecemos aquela ganguezinha de adolescentes, aquele grupelho que
acha que arrasa porque mete medo nos mais fraquinhos, mais novos, mais bobos.
Não somos corajosos, muito pelo contrário: somos apenas covardes satisfeitos em
intimidar quem não nos responderá agressivamente, jamais. Ou: ficamos felizes
em intimidar aqueles que responderão agressivamente, sim, mas com pouco
embasamento, e aí é que o vrau vai vir caprichado, com direito
a esculacho sócio-cultural e tudo. A militância vaidosa adora humilhar os já
“facilmente humilháveis” (aos olhos elitistas dos lacradores).
Esse
é o outro elitismo do qual estou falando. Não precisa ser sobre grana, família,
tradição. Pode ser bem mais disfarçado que isso.
Elitismo
pode ser sua crença de que aquele ali é ignorante e você pode rir dele.
Elitismo
pode ser a sua convicção de que aquele grupo de teatro ali, que você não gosta,
não merece respeito (como se respeito fosse artigo a ser gasto apenas com
alguns, selecionados a dedo). Elitismo pode ser menosprezar internamente quem
você considera feio. Pode ser fazer
piadinhas sobre o outro sempre, como modus
operandi, em uma tentativa inútil de se mostrar superior. Daí você faz tudo
isso e pensa que o simples fato de não ter grana te livra de ser elitizado, mas
não livra, nem um pouco. Toda vez que você fala com desdém do outro, da arte do
outro, de qualquer coisa do outro, sua imodéstia e vaidade insaciáveis se
confirmam.
Elitismo
pode ser sua mania, prezado historiador pop, de rir de quem o admira, de
ironizar quem pede conselhos a você, de considerar piores aqueles que gostariam
de debater contigo em sua rede social (aquela que você despreza e tanto usa).
Bom, neste caso aqui acabei falando, sem querer, de elitismo tradicional, mesmo
– elitismo queijos e vinhos, elitismo jantar em Curitiba.
Elitismo
pode ser essa ânsia insaciável por poder. Poder, e não grana: poder é muito
pior do que grana (o dinheiro é apenas uma das formas de poder). E esse poder é
tudo o que o elitista mais ama, daí seu desdém, sua arrogância, seu fingir não
ver, seu fingir não saber de nada que não seja ele mesmo e seu mundo. Todo o
resto é risível (digo: os outros, aqueles que não fazem parte de sua gangue). Só
vale saber do mundo do outro se for para ter elementos para diminuí-lo.
O
quanto estes pódios não minam nossa alegria? O quanto esta competitividade
louca não nos impede de levarmos várias empreitadas adiante? O quanto este
pensamento prejudica nossa espontaneidade? Penso neste assunto com muita
frequência – até mesmo porque me vejo como um grande retrato deste sistema que
estimula a crença em 1º, 2º e 3º lugar – e percebo, sem dificuldades, as
consequências deste sistema de pódios em mim. Tenho as sequelas (reversíveis, é
claro, mas graves) de uma sociedade que vive de comparações e medições: quem é
melhor, quem é pior? “Este dá um banho naquele, sem dúvidas”, “este aqui,
coitado, certamente é o último da lista”. Passei uma vida inteira comparando e
sendo comparada, diminuindo e sendo diminuída, elogiando um para criticar
outro. Não ganhei nada com isso, só perdi meu precioso tempo com raivas e
picuinhas. E ao mesmo tempo que é revoltante perceber que isso é só uma farsa
estimulada por tudo, absolutamente tudo o que nos cerca (jornais, TV, outdoors,
publicidade, revistas de fofoca), é ainda mais desagradável ver os amigos e
conhecidos caindo nesta mesma lorota.
Conheço
pessoas inteiradíssimas sobre política, sociologia, arte etc. acreditando
piamente que aquela emissora lá do Cidadão Kane, ela sim, pode legitimar a
carreira de um artista. Quando vejo isso percebo o quanto essa emissora é
muito, muito mais perigosa do que qualquer político neste país, pois não só
consegue engrupir milhões de incautos, mas também contar com a simpatia
daqueles que teriam todas as ferramentas necessárias para criticar
ferrenhamente suas falácias. Não: na hora de falarmos em
“arte”, “cultura” e “entretenimento”, o canal 4 continua sendo o
lugar mais incrível no quesito oportunidade, aquele que te credencia como
artista “de verdade”. Quando vi artistas independentes babando um ovo animal e
inesperado desse conglomerado eu entendi que, infelizmente, nossa autoestima
não anda nada bem. Imagina como deve estar a cabeça de alguém que pensa que
apenas a TV confere respeitabilidade? Imagina o que deve achar de si um artista
independente que, mesmo longe de estar ao alcance de milhares, acredita que
apenas quando começar a sair em matérias de jornal é que vai ser um
profissional de verdade?
Estamos
todos nos sentindo uns lixos, concluo. E lixos que fazem questão de dar o vrau,
é claro, para disfarçar um pouco a agonia. Enquanto se puder dar um fora em
alguém, haverá esperança.
Uma
pena ver que nossos discursos igualitários não nos impedem de sermos
iguaizinhos ao Boris Casoy, achando que os garis são piores do que nós... Nós,
os seres “qualificadíssimos”, “estudados”, intelectualizados. Cujo intelecto,
infelizmente, não serviu para o mais importante: entender o
ser humano, o outro, o si mesmo.
Ando fascinada por este assunto – relações de
poder e competitividade – e tenho pensado nele sem parar. Porque pude perceber o quanto estes dois elementos são o
motor da inveja e do individualismo, e o quanto estes dois últimos são o motor
da ansiedade e depressão. Não quero mais fazer parte deste círculo vicioso. E me sinto aliviada quando reflito sobre isso e percebo o quanto se trata de algo
imposto, interessante aos jogos de poder: não é algo inevitável e intrínseco, não mesmo.
Podemos propor outro tipo de vida, podemos ter o respeito como uma boa base.
Basta ter boa vontade (acho que ainda não entendemos muito bem o gigantesco
potencial da boa vontade, aliás).
E aí? Vamos conseguir largar mão do vrau e do escracho como primeira alternativa, sempre, e substituí-los por uma convivência mais harmônica? Ou lacrar ainda é mais importante?
E aí? Vamos conseguir largar mão do vrau e do escracho como primeira alternativa, sempre, e substituí-los por uma convivência mais harmônica? Ou lacrar ainda é mais importante?
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