sábado, 25 de novembro de 2017

O gosto da criação

Sempre lembro de uma palestra-conversa de Edu Krieger, realizada em 2015, onde o compositor falou sobre seu processo de criação. Foi uma tarde agradável, discordei de alguns pontos, concordei com vários outros, tudo ok. Mas, com o passar do tempo, fui percebendo que eu citava uma ou outra fala de Edu com amigos, vira e mexe, e que até mesmo compus algumas vezes pensando em certos pontos que ele tinha abordado. Entendi, então, que aquela tarde havia sido bem mais importante do que apenas agradável.
 Lembro vez ou outra de Edu falando, por exemplo, sobre o quanto é proveitoso ouvirmos aqueles que influenciaram os artistas que admiramos: “Como adorava Chico Buarque, fui ouvir Noel Rosa”, disse ele. Lembro de Edu nos falando sobre como, ainda muito novo, suas canções ainda tinham um excesso de inocência e eram por demais “violonísticas” (entendi isso como: um pouco viciadas naquilo que os acordes proporcionam, um pouco reféns daquilo que ele, como violonista, fazia com o instrumento). Nos falou sobre como é bom um pouco de “veneno” nas canções, algo obscuro em algum momento, um pouco de “maldade”. Falou isso e muito mais, inúmeras coisas que não saíram de minha cabeça e outras poucas que devem ter saído. Mas o mais bacana foi perceber o quanto é um grande privilégio saber sobre o processo de criação de alguém. Vi o quanto conversar sobre criação é proveitoso, o quanto se entende um pouco melhor do próprio processo ao ouvir como funciona o do outro.
Também em 2015, ano em que quis voltar a escrever e compor, li algumas matérias sobre o assunto na internet. E digo que me incentivou muito ler artigos onde compositores falavam sobre seus processos, todos generosos, incentivando aqueles (muitos) que, como eu, ou estavam enferrujados depois de tanto tempo sem praticar, ou ainda não haviam começado a prática, e por isso sentiam-se como se estivessem diante de algo misterioso.
Há pouco tempo um colega compositor criou um grupo no Facebook para falar sobre o processo de composição e poder trocar impressões com outros músicos. Foi bacana vê-lo descrever seu medo em iniciar uma nova canção, por exemplo – algo que também acontece comigo, algo que deve acontecer com tantos por aí. Acho ótima esta iniciativa de falar sobre um assunto que muitas vezes fica meio de lado, por várias possíveis razões.
Por isso considero generosa a atitude de todos que se se dispõem a falar sobre, que gostam de falar sobre (porque ninguém é obrigado a gostar de dividir isso). É bom saber da dúvida de outros, é bom saber qual a técnica, de cada um. Li agora, por exemplo, um pequeno artigo que rapidamente explicava a técnica de criação de David Bowie, a cut up technique. Recomendo a leitura, até mesmo porque há um rápido vídeo do próprio Bowie mostrando como esta técnica funciona.  
E dia desses achei um vídeo muito bacana da Karol Conka, onde ela, em um making of da gravação de “Tombei”, acabou mostrando um pouco do processo de criação desta música. É muito legal ver como a letra vai nascendo, como Karol vai gravando alguns trechos e depois diz que ela e Zegon (Tropkillaz) se encarregarão de colocar mais “músculo” na canção, que por ora ainda é só um “esqueleto”.
Ah, também não posso deixar de mencionar o livro Todas as letras de Gilberto Gil. É muito bacana ler os depoimentos de Gil sobre a criação de “Sandra” e de tantas outras. Recomendo a leitura a qualquer um, compositor ou não.
Para terminar, lembrei de mais um rápido episódio, aqui em casa: estava há um tempinho empacada em duas canções cujas letras fiquei feliz de ter escrito, mas suas melodias não me estavam satisfazendo de jeito nenhum. Daí resolvi falar como o meu companheiro, que foi muito prolífico como compositor (e hoje o é nas artes plásticas), para ver se eu estava sendo só preguiçosa ou se era assim com todo mundo: “Você conseguia fazer uma música sobre qualquer assunto que quisesse abordar?”. Ele me disse que não, que às vezes não rolava, às vezes era mesmo complexo criar uma melodia para uma letra específica, e unir os elementos melodia e letra nem sempre é fácil. Gostei de compartilhar minha dúvida, porque entendi que às vezes a coisa não sai, mesmo, e não necessariamente trata-se de preguiça. Pode ser que valha a pena tentar uma parceria (foi o que fiz). Ou deixar passar um tempo até que a letra/melodia pareça nova...
                      O interessante é que fiz este blog para falar principalmente sobre criação, mas é inevitável cair em outros assuntos, também tão bacanas de serem desenvolvidos quanto o da composição. E continuarei abordando outros tópicos, mas desejo falar mais vezes sobre este momento em que temos uma ideia e sobre tudo o que vem depois disso – o esforço para materializá-la, desenvolvê-la, melhorá-la. Ajudar a desmistificar um pouco esse momento e também essa capacidade, que todos os seres humanos têm. 

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O que a arte fez com o meu corpo



Atualmente temos testemunhado/sabido de questões muito emblemáticas em relação ao corpo. A mostra Queermuseu, cancelada pela instituição que a abrigava, e a performance La bête, do artista Wagner Schwartz, foram dois tópicos que surgiram recentemente, com grande alarme e pouquíssima ou nenhuma reflexão da parte de quem se chocou com ambas (o alarme foi tão grande e escandaloso que poderia se pensar que nada parecido já havia sido feito nas artes). Mas entendi de vez, com estes dois episódios, que quando se trata de corpo e sexualidade nós não estamos, quase nunca, dispostos a pensar sobre o assunto...
Há algum tempo inventei um termo para algo que percebi ser um fenômeno bastante comum: a baixaria dos domingos em família. Já repararam? Se não, reparem. O “domingo” é só um emblema, pode ser qualquer dia da semana. Pode ser um comentário sobre o tamanho da pica de um bebê, por exemplo (aliás, querem falar de tamanho de pênis? Sugiro o documentário Unhung Hero.) Pode ser um comentário, em uma festa repleta de crianças e idosos, sobre “aquela piranha lá”, ou “aquele viado lá”. Pode ser aquele momento em que aquele parente acha que você não está na sala, bem atrás dele, e fala, vendo TV: “Que gostosa!” (sobre uma menina de uns 20 anos, aliás), e você finalmente descobre que seu parente é igualzinho àqueles caras que sempre mexem contigo na rua, da forma mais invasiva e desrespeitosa possível. Pode ser aquele momento em que outro familiar comenta que aquela bicha, lá, deve estar feliz porque acabou de dar (“só pode”). Acho que já deu para entender o que é a baixaria dos domingos em família. Não é discussão ou diálogo sobre sexualidade. É só tratar o sexo como se fosse a coisa mais suja de todas (e é isso o que achamos que o sexo é) e fazer piadinhas sobre. Pronto!
Dito isso, queria falar um pouco sobre o quanto a arte me levou a conhecer melhor meu corpo e minha liberdade. E o quanto a arte foi me afastando desse universo chulo, e me levando, aos poucos, para um universo muito mais livre. Um universo onde me senti dona de mim e do meu corpo, um mundo de uma vivência ora alegre (festiva e colorida), ora densa (onde o autoconhecimento leva a experiências radicais). Fui observando o quão livres eram outros artistas, e me sentindo livre também por estar em contato direto com eles, ou só por conhecer suas obras.
Apesar de ter me formado em Comunicação, nos corredores da faculdade ganhei dois grandes presentes, que iriam influenciar e incrementar muito minha vida artística: o canto coral e o teatro. O canto coral foi incrível, e ainda falarei sobre esta vivência em outro texto. Mas começar a fazer teatro, especificamente, me proporcionou aquela sensação deliciosa de matar uma vontade antiga. Naquele ambiente eu me senti bem, e senti que eu me nutria de algo importantíssimo, extremamente necessário para a pessoa que era e ainda sou. (Engraçado que até anotei em minha agenda o dia em que comecei a frequentar o teatro – acho que eu já sabia o quanto aquilo seria importante em minha vida.) Só saí do grupo dois anos depois, quando comecei a trabalhar em um horário mais restrito. Foram dois anos prazerosos e alegres (2007 a 2009), e graças a esta experiência me inscrevi na Escola de Teatro Martins Penna, ingressando em 2010. Nesta última, vivi uma imensidão de subjetividades. Foi uma experiência das mais gratificantes, onde eu e meus colegas de turma trabalhamos nossos corpos sem receios, sem não-me-toques, e com plena confiança. Lá dei prosseguimento ao que o Grutacha (o grupo de teatro da faculdade) havia despertado em mim. Dei sorte de estar em uma turma confiável e amiga, e com ela quebrei vários desses tabus mínimos, quase imperceptíveis, que carregamos em nosso dia a dia.
Mas eu poderia dizer que, falando em ambientes onde meu corpo se sentiu mais livre, o Tá na Rua tem grande destaque. No início de 2016 comecei a conviver com o grupo, e neste conheci a despressurização corporal proposta por Amir Haddad. É algo tão forte e bonito que só vivendo, mesmo. Mas posso dizer que as dramaturgias, escritas com o corpo em cima de diferentes músicas, por duas horas, sem parar, fazem com que, aos poucos, caiam as nossas máscaras. Damos bandeira, mostramos quem somos, nossos medos, nossos desejos, nossa alegria, nossa melancolia, nossa inveja, nossa admiração pelo outro, nosso ciúme, nosso descontrole, nossa violência, nossa inocência, nossa malícia, nossa timidez, nossas inúmeras repressões. Tudo isso com uma dancinha, uma dancinha que vai nos levando, levando, e com o tempo nada mais temos a fazer a não ser mostrar o que vivemos tentando esconder.
E, curiosamente, eu poderia dizer que o Teatro Oficina, do qual nunca fiz parte, me influencia a repensar meu corpo tanto quanto o Tá na Rua. Estes dois grupos que tanto admiro têm um trabalho muito importante no que diz respeito à fisicalidade. A diferença é que dentro do Tá na Rua eu consigo viver isso com muito mais frequência do que apenas em visitas esporádicas ao Bixiga. Mas cada apresentação do Oficina – grupo que certamente tem uma forte ênfase na sexualidade (como celebração, mas também como política) – reverbera durante semanas, meses, em mim. É muito material para pensar, é muita coisa para sentir, e isso tudo fica ecoando e vai me libertando, cada vez mais.
(E as falas de Zé Celso e de Amir Haddad – diretores do Oficina e do Tá na Rua, respectivamente –, impressas em jornais ou livros, ou em vídeo, ou testemunhadas pessoalmente, também ficam muito tempo comigo e me ajudam a entender muito do que sou.)
Indo para a seara da performance, esse campo tão impactante e ainda relativamente tão novo, lembro de ter ido, em 2015, ver a exposição Terra comunal, de Marina Abramovic, no Sesc Pompeia. Vi um registro de Marina e seu então companheiro, Ulay, nus, em uma porta, “atravancando” a entrada dos convidados, obrigando-os a um contato com seus corpos despidos. Vi um registro de Marina muito jovem, dizendo, vezes sem conta, “Art must be beautiful, artist must be beautiful”, escovando seus cabelos sem parar (me pegando no pulo, pois caí no jogo e pensei: “como ela era bonita!”). Vi um registro da performance na qual Marina, durante doze dias, viveu em um pequeno cubículo, em uma galeria de Nova York, totalmente exposta, como uma obra viva, bebendo apenas água, indo ao banheiro, tomando banho, dormindo e meditando na frente do público. Tudo isso ecoa até hoje em mim, me obrigando a refletir sobre o que é o corpo, o porquê dele ser visto com tanto pudor, e de onde vem esse problemão quando se utiliza o corpo como sujeito, e não como objeto (porque objetificar o próprio corpo é sucesso garantido, correto? O problema é utilizar o corpo como plataforma, manifesto, celebração; o problema é ser sujeito, repito).
Mas são tantas e tantas contribuições que a arte fez em minha vida. Como contabilizá-las? As transcrições de áudio que fiz de entrevistas do grupo EmpreZa, podendo compreender melhor suas radicais experiências com o corpo; o filme Pina e suas lindas cenas de uma dança que demorei tanto a entender; as preparações corporais que tive o prazer de viver, em diferentes ocasiões que a arte me proporcionou (com Luísa Pitta, Laura Lagub, Mario Mendes, Michel Robin, Adriana Bonfatti etc.); a Marxha das cem tetas, de Iroshi Xanai; as fotografias de nu feminino e feminista para o projeto Rugidos uterinos, de Amanda Nakao; ou apenas saber da existência da performance O corpo é a obra, de Antonio Manuel, circulando nu, em plena ditadura, pelo XIX Salão de Arte Moderna, no MAM-RJ. (Estes exemplos são gotas em um oceano, o oceano de toda a arte que pude ver em 34 anos.)
Acho todas estas formas de lidar com a corporalidade muito mais saudáveis e interessantes do que com piadinhas – sem graça, invariavelmente  sobre corpo, sexualidade, gênero etc. Piadinhas estas que, aliás, sempre terão todo o perdão ou mesmo o aval da sociedade. A baixaria dos domingos em família está liberada, desde sempre. 
E acho que, apesar do corpo ter se tornado um demônio (o corpo é uma culpa) em uma sociedade hipócrita, na arte o corpo ainda é, muito, uma celebração e catarse (eu sou uma festa), ou uma investigação profunda. As duas opções me agradam muito, e preenchem importantes lacunas em mim.
Acredito que cada pessoa tenha questões específicas que deseje/necessite desenvolver. Eu tenho assuntos específicos dos quais quero falar e dos quais quero me aproximar, e o corpo (e as repressões que o envolvem) é um destes temas que me são primordiais – e felizmente a arte fala muito sobre isso, o tempo todo. Então opto por, sempre que possível, trabalhar isso em mim pelo viés artístico: além de ser efetivo, é bem mais prazeroso.