Atualmente
temos testemunhado/sabido de questões muito emblemáticas em relação ao corpo. A
mostra Queermuseu, cancelada pela instituição que a abrigava, e a
performance La bête, do artista Wagner Schwartz, foram dois tópicos que surgiram recentemente, com grande alarme e pouquíssima ou nenhuma
reflexão da parte de quem se chocou com ambas (o alarme foi tão grande e escandaloso
que poderia se pensar que nada parecido já havia sido feito nas artes). Mas
entendi de vez, com estes dois episódios, que quando se trata de corpo e
sexualidade nós não estamos, quase nunca, dispostos a pensar sobre o assunto...
Há
algum tempo inventei um termo para algo que percebi ser um fenômeno bastante
comum: a baixaria dos domingos em família. Já repararam? Se não,
reparem. O “domingo” é só um emblema, pode ser qualquer dia da semana. Pode ser
um comentário sobre o tamanho da pica de um bebê, por exemplo
(aliás, querem falar de tamanho de pênis? Sugiro o documentário Unhung Hero.) Pode ser
um comentário, em uma festa repleta de crianças e idosos, sobre “aquela piranha
lá”, ou “aquele viado lá”. Pode ser aquele momento em que aquele parente
acha que você não está na sala, bem atrás dele, e fala, vendo TV: “Que
gostosa!” (sobre uma menina de uns 20 anos, aliás), e você finalmente descobre
que seu parente é igualzinho àqueles caras que sempre mexem contigo na rua, da
forma mais invasiva e desrespeitosa possível. Pode ser aquele momento em que
outro familiar comenta que aquela bicha, lá, deve estar feliz
porque acabou de dar (“só pode”). Acho que já deu para entender o que é a baixaria
dos domingos em família. Não é discussão ou diálogo sobre sexualidade. É só
tratar o sexo como se fosse a coisa mais suja de todas (e é isso o que achamos
que o sexo é) e fazer piadinhas sobre. Pronto!
Dito
isso, queria falar um pouco sobre o quanto a arte me levou a conhecer melhor
meu corpo e minha liberdade. E o quanto a arte foi me afastando desse universo
chulo, e me levando, aos poucos, para um universo muito mais livre. Um universo
onde me senti dona de mim e do meu corpo, um mundo de uma vivência ora alegre
(festiva e colorida), ora densa (onde o autoconhecimento leva a experiências
radicais). Fui observando o quão livres eram outros artistas, e me sentindo
livre também por estar em contato direto com eles, ou só por conhecer suas
obras.
Apesar
de ter me formado em Comunicação, nos corredores da faculdade ganhei dois
grandes presentes, que iriam influenciar e incrementar muito minha vida
artística: o canto coral e o teatro. O canto coral foi incrível, e ainda
falarei sobre esta vivência em outro texto. Mas começar a fazer teatro,
especificamente, me proporcionou aquela sensação deliciosa de matar uma vontade
antiga. Naquele ambiente eu me senti bem, e senti que eu me nutria de algo
importantíssimo, extremamente necessário para a pessoa que era e ainda sou.
(Engraçado que até anotei em minha agenda o dia em que comecei a frequentar o
teatro – acho que eu já sabia o quanto aquilo seria importante em minha vida.)
Só saí do grupo dois anos depois, quando comecei a trabalhar em um horário mais
restrito. Foram dois anos prazerosos e alegres (2007 a 2009), e graças a esta
experiência me inscrevi na Escola de Teatro Martins Penna, ingressando em 2010.
Nesta última, vivi uma imensidão de subjetividades. Foi uma experiência das
mais gratificantes, onde eu e meus colegas de turma trabalhamos nossos corpos
sem receios, sem não-me-toques, e com plena confiança. Lá dei prosseguimento ao
que o Grutacha (o grupo de teatro da faculdade) havia despertado em mim. Dei
sorte de estar em uma turma confiável e amiga, e com ela quebrei vários desses
tabus mínimos, quase imperceptíveis, que carregamos em nosso dia a dia.
Mas eu
poderia dizer que, falando em ambientes onde meu corpo se sentiu mais livre, o
Tá na Rua tem grande destaque. No início de 2016 comecei a conviver com o
grupo, e neste conheci a despressurização corporal proposta
por Amir Haddad. É algo tão forte e bonito que só vivendo, mesmo. Mas posso
dizer que as dramaturgias, escritas com o corpo em cima de diferentes músicas,
por duas horas, sem parar, fazem com que, aos poucos, caiam as nossas máscaras.
Damos bandeira, mostramos quem somos, nossos medos, nossos desejos, nossa
alegria, nossa melancolia, nossa inveja, nossa admiração pelo outro, nosso
ciúme, nosso descontrole, nossa violência, nossa inocência, nossa malícia,
nossa timidez, nossas inúmeras repressões. Tudo isso com uma dancinha,
uma dancinha que vai nos levando, levando, e com o tempo nada mais temos a
fazer a não ser mostrar o que vivemos tentando esconder.
E,
curiosamente, eu poderia dizer que o Teatro Oficina, do qual nunca fiz parte,
me influencia a repensar meu corpo tanto quanto o Tá na Rua. Estes dois grupos
que tanto admiro têm um trabalho muito importante no que diz respeito à
fisicalidade. A diferença é que dentro do Tá na Rua eu consigo viver isso com
muito mais frequência do que apenas em visitas esporádicas ao Bixiga. Mas cada
apresentação do Oficina – grupo que certamente tem uma forte ênfase na
sexualidade (como celebração, mas também como política) – reverbera durante
semanas, meses, em mim. É muito material para pensar, é muita coisa para
sentir, e isso tudo fica ecoando e vai me libertando, cada vez mais.
(E as
falas de Zé Celso e de Amir Haddad – diretores do Oficina e do Tá na Rua,
respectivamente –, impressas em jornais ou livros, ou em vídeo, ou
testemunhadas pessoalmente, também ficam muito tempo comigo e me ajudam a
entender muito do que sou.)
Indo
para a seara da performance, esse campo tão impactante e ainda relativamente
tão novo, lembro de ter ido, em 2015, ver a exposição Terra comunal,
de Marina Abramovic, no Sesc Pompeia. Vi um registro de Marina e seu então companheiro, Ulay, nus, em uma porta, “atravancando” a entrada dos
convidados, obrigando-os a um contato com seus corpos despidos. Vi um registro
de Marina muito jovem, dizendo, vezes sem conta, “Art must be beautiful,
artist must be beautiful”, escovando seus cabelos sem parar (me pegando no
pulo, pois caí no jogo e pensei: “como ela era bonita!”). Vi um registro da
performance na qual Marina, durante doze dias, viveu em um pequeno cubículo, em
uma galeria de Nova York, totalmente exposta, como uma obra viva, bebendo
apenas água, indo ao banheiro, tomando banho, dormindo e meditando na frente
do público. Tudo isso ecoa até hoje em mim, me obrigando a refletir sobre o que
é o corpo, o porquê dele ser visto com tanto pudor, e de onde vem esse
problemão quando se utiliza o corpo como sujeito, e não como objeto
(porque objetificar o próprio corpo é sucesso garantido, correto? O problema é
utilizar o corpo como plataforma, manifesto, celebração; o problema é ser
sujeito, repito).
Mas são
tantas e tantas contribuições que a arte fez em minha vida. Como
contabilizá-las? As transcrições de áudio que fiz de entrevistas do grupo
EmpreZa, podendo compreender melhor suas radicais experiências com o corpo; o
filme Pina e suas lindas cenas de uma dança que demorei tanto
a entender; as preparações corporais que tive o prazer de viver, em diferentes
ocasiões que a arte me proporcionou (com Luísa Pitta, Laura Lagub, Mario
Mendes, Michel Robin, Adriana Bonfatti etc.); a Marxha das cem tetas, de
Iroshi Xanai; as fotografias de nu feminino e feminista para o projeto Rugidos uterinos, de Amanda Nakao; ou apenas saber da
existência da performance O corpo é a obra, de Antonio Manuel,
circulando nu, em plena ditadura, pelo XIX Salão de Arte Moderna, no MAM-RJ. (Estes exemplos são gotas em um oceano, o oceano de toda a arte que pude ver em 34 anos.)
Acho
todas estas formas de lidar com a corporalidade muito mais saudáveis e
interessantes do que com piadinhas – sem graça, invariavelmente – sobre corpo,
sexualidade, gênero etc. Piadinhas estas que, aliás, sempre terão todo o
perdão ou mesmo o aval da
sociedade. A baixaria dos domingos em família está liberada, desde sempre.
E acho
que, apesar do corpo ter se tornado um demônio (o corpo é uma culpa) em
uma sociedade hipócrita, na arte o corpo ainda é, muito, uma celebração e
catarse (eu sou uma festa), ou uma investigação profunda. As duas opções
me agradam muito, e preenchem importantes lacunas em mim.
Acredito
que cada pessoa tenha questões específicas que deseje/necessite desenvolver. Eu
tenho assuntos específicos dos quais quero falar e dos quais quero me
aproximar, e o corpo (e as repressões que o envolvem) é um destes temas que me
são primordiais – e felizmente a arte fala muito sobre isso, o tempo todo.
Então opto por, sempre que possível, trabalhar isso em mim pelo viés artístico:
além de ser efetivo, é bem mais prazeroso.
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