terça-feira, 27 de março de 2018

Meu caminho pelo mundo (eu mesmo traço)

Que tipo de artista é você? 
Ou, melhor: que tipo de pessoa é você? E como esta pessoa que você é o influencia no modo de viver sua arte?
Há muitas formas de pensar e agir dentro deste universo.
Há artistas-empreendedores, que têm prazer em gerenciar a própria carreira; há aqueles que não querem pensar em nada que não seja apenas a música; há aqueles que se esforçam para divulgar o próprio trabalho e alimentam as redes constantemente; há aqueles que evitam fazer shows exatamente para não precisarem fazer esse tipo de coisa (divulgar e falar de si); há aqueles que valorizam bastante o conceito visual (figurino, cenário, fotos); há aqueles que não pensam que a parte visual tenha relação com a parte artística; há aqueles que gostam de se envolver com projetos diversos; há aqueles que só querem saber do próprio trabalho e de nenhum outro; há aqueles que preferem autonomia total e poucas parcerias (ou nenhuma); há aqueles que gostam apenas de compor; há aqueles que gostam apenas de interpretar; há aqueles que gostam de tocar um instrumento enquanto cantam (e se sentem nus sem o violão ou piano); há aqueles que não se interessam muito por instrumentos e preferem só cantar/compor; há aqueles que amam apenas a música e mais nada; há aqueles que precisam do cinema/teatro/literatura etc. para fazerem sua música; há aqueles que gostam de falar sobre o processo de composição; há outros que preferem mostrar só o seu trabalho, não seus processos; há aqueles que buscam viver de música, sem almejar sucesso comercial; há aqueles que precisam do sucesso comercial e de um grande séquito; há aqueles que buscam fazer composições rebuscadas; há aqueles que buscam a simplicidade; há aqueles que amam a contracorrente e se inspiram nesta; há aqueles que amam estar em grandes projetos (musicais, televisão); há aqueles que gostam de festivais competitivos; há aqueles que não têm a veia da competição; há aqueles aficionados em tocar em todos os lugares possíveis, de bares a teatros; há aqueles que tocam bem pouco porque só querem tocar em lugares específicos; há aqueles que escolhem ter trabalhos paralelos à música para fazerem estritamente apenas o que querem nesta área; há outros que preferem trabalhar apenas com o que se relacione à música (dando aulas, gravando jingles etc.), mesmo fora de seu trabalho artístico; há aqueles que pensam que música é leveza e descontração; há aqueles que pensam que música não é brincadeira; há aqueles que valorizam a boa técnica dos músicos, antes de tudo; há aqueles que valorizam as boas relações com os músicos, antes de tudo; há aqueles que têm uma preocupação maior com as letras; há aqueles que têm um interesse maior pela melodia; há aqueles que querem se cercar de grandes nomes consagrados; há aqueles que preferem trabalhar com “desconhecidos”; há aqueles que gostam mais de gravar do que se apresentar ao vivo; há aqueles que adoram fazer shows e acham a gravação uma coisa meio tensa; há aqueles que se esforçam para fazer um bom arranjo; há aqueles que preferem gravações simples, para que a canção sobressaia; há aqueles que não acham tão importante assim a afinação vocal; há aqueles que se martirizam caso a afinação não esteja impecável; há aqueles que acham que tocar na rua é um pouco constrangedor; há aqueles que encontraram na rua sua libertação total; há aqueles que publicam cada canção nova que fazem na internet; há aqueles que preferem divulgar as canções em formato de álbum, em um só pacote; há aqueles que precisam de um produtor musical para pensar suas canções; há aqueles que preferem fazer a própria produção, sem mais ninguém opinando; há aqueles que precisam de bastante isolamento para conseguirem criar; há aqueles que necessitam da interação com outros para se sentirem inspirados. Há muito, muito mais opções do que as que citei aqui.      
A partir do momento que eu entendi as inúmeras especificidades que podem existir na vida de um artista, entendi que não há caminhos a seguir, mas caminhos a se inventar. E me perguntei: o que combina mais com a pessoa que sou? E como vou construir minha vida dentro da arte: seguindo algo preestabelecido ou estabelecendo, eu  mesma, todos os detalhes?

quarta-feira, 14 de março de 2018

A mística sobre viver de arte


Lembro de estar na sala de música da minha professora de canto. Eu a tinha visto pela primeira vez em 2003, cantando no Sergio Porto e, após reencontrá-la em uma festa, seis anos depois, comecei a ter aulas com ela.
Não sei se após algumas semanas, ou se logo no primeiro dia de aula, percebi algo: aquela pessoa vivia de música. Dava aulas de música em uma escola, em uma companhia de teatro, em uma faculdade de dança, em sua casa. Tinha seu trabalho autoral. Cantava em uma banda.
Eu havia sido enganada. Uma narrativa havia permeado minha vida até então: “não se ganha dinheiro com música”. Ou com arte, em geral. O artista plástico ouve isso, a atriz também, o dançarino, a escritora etc.
Eu havia sido enganada não porque minha professora fosse rica ou ganhasse exatamente aquilo que merecia por suas atividades cheias de dedicação. Não se trata disso. Falo de viver de música, algo bem mais simples do que ser rico. E ela vivia. Então, uma mentira me havia sido contada.
Me senti enganada porque eu já havia feito tantas coisas totalmente contrárias às minhas ideologias (exemplo-mor: trabalhar como vendedora, durante anos!); tantas coisas que eu não gostava; tantas fugas daquilo que eu realmente ficava animada para fazer. Ok, na adolescência é difícil trabalhar em algo que se ame, certamente. Mas o preocupante não é você ter um emprego ruim em algum momento: o preocupante é você não ter a menor perspectiva de sair daquilo; é achar que vai se aposentar fazendo algo que odeia. O ruim, mesmo, é você estar convicto de que não é possível achar um meio termo saudável entre o masoquismo do varejo e o estrelato do rock and roll. Certamente existe uma terceira opção. E não ver isso causa um desânimo perigoso. 
Obviamente eu não estou aqui incentivando ninguém a jogar tudo para o alto e viver apenas de sua arte. Todos sabem que isso não é algo exatamente fácil. Mas o que eu me dei conta é de que é possível estar envolvido com o que se ama em diversos âmbitos, e assim se sustentar, mesmo que nem sempre a maré seja muito favorável. E, após observar a vida de minha professora, conheci inúmeras pessoas que viviam o mesmo tipo de vida. E estas pessoas certamente sempre estiveram ao meu redor, mas enxergar algo que não sabemos que existe é mais difícil.
Para enfatizar a questão de que não se trata de viver nas nuvens, mas exatamente o contrário, dou mais um exemplo: vivo com um artista plástico. E o que ele faz para viver? Dá aulas de arte. Esta pessoa tem como assunto a arte, sempre, em sua produção artística e em sua vida profissional. Esta pessoa se alimenta graças às horas que ele investe falando sobre Picasso, Matisse e Van Gogh com seus alunos. Conclusão: caso ele tenha ouvido, em algum momento durante sua infância ou adolescência, que não conseguiria se sustentar com a arte, podemos concluir que ele ouviu uma mentira.
Lembro que um pouco antes das aulas com minha professora, em 2006, comecei a cantar em um grupo coral. E lá também percebi algo interessante: havia no grupo pessoas que, além de cantar ali, atuavam em peças, faziam assistência de regência em outros coros, faziam trilhas para teatro etc. Neste momento também descobri que era possível ter um grande envolvimento com as artes, de diversas formas. Aquelas eram as pessoas mais proativas que eu havia conhecido até então, e as mais envolvidas com assuntos interessantes. Eu não estava pensando na questão do sustento, ainda, mas as vidas daquelas pessoas eram cheias de momentos divertidos e experiências marcantes. Foi uma época bastante inspiradora, também.
Por que será que se perpetua essa mentira? Por que será que se omite o detalhe de que é possível viver de artes? Em muitos casos, apenas quando já se é “gente grande” descobre-se o engodo. Daí para um adulto dar o braço a torcer / entender que tem o direito de seguir algo que gosta, é um pouco mais difícil. A gente tem essa cultura (insisto em falar nisso) de que é na infância que tudo começa, e que iniciar uma nova vida depois de adulto é algo risível e menos digno de respeito. O estrago feito torna-se irreversível, então, mesmo não sendo.
O que eu demorei muito para entender, também, é que o padrão dos outros geralmente é diferente do nosso. Descobri que o padrão de vida de muitas pessoas à minha volta é bastante alto, mesmo que elas achem que não. Meu padrão menos ambicioso faz com que eu precise de menos para viver (minha fase consumista – que começou quando eu trabalhava no varejo, olha que coisa – foi encerrada há alguns anos, graças ao convívio com pessoas econômicas e criativas, que me mostraram que a vida é muito mais do que grana e consumo), mas o padrão de muitas das pessoas que acham que a arte não sustenta ninguém é elevadíssimo. Elas precisam de muito para viver. E talvez não pensem que muitos artistas só querem viver com dignidade. Idas frequentes a restaurantes, escola particular, comprar sem ver o preço, celular caro: tem gente que vive muito bem (muito, mesmo) sem tudo isso aí que eu falei; ou porque não gosta, ou porque aprendeu a não desejar o que sua receita não permite. Talvez não seja necessário ninguém se preocupar com aquela criança que tem “tendências artísticas” (hahaha). Pode ser que o tipo de vida que ela venha a almejar seja bem mais simples, sem grandes desejos perdulários, sem buscar este tipo de “satisfação” que só a grana dá.  
Não estou aqui fazendo ou pregando voto de pobreza, muito menos estou enaltecendo uma vida sem graça, imóvel, sem desejo. Pelo contrário, sou entusiasta de uma vida cheia de eventos, encontros e muita arte (falo de quantidade e intensidade: luxo para todos). E esta arte, esses eventos e esses encontros podem acontecer mesmo que se tenha pouca grana. Mas se o seu padrão for alto, nunca conseguiremos entrar em um consenso sobre a quantia necessária para se viver. Para mim luxo (já que mencionei essa palavra) é poder ver boas peças e bons shows, ter um teto, me alimentar, viajar de ônibus, caminhar horas pela cidade. Luxo é ter tempo para gastar comigo. 
Foi bom entender que fui influenciada por uma fala recorrente, persistente e enganosa, desde sempre. Foi bom entender que há uma mística em volta da arte, e esta mística se torna verdade de tanto que acreditamos nela. E foi bom entender que a realidade não necessita de muita mágica, eu diria: quanto mais dedicação, mais chances de se viver de arte. Não digo que seja fácil; digo que a lógica é simples. 
Penso que o senso comum derrotista, disfarçado de mística, só serve para endeusar estrelas da música (desumanizando-as) e boicotar, desesperadamente, os planos de quem simplesmente deseja viver fazendo algo que gosta. A realidade, felizmente, tem deposto contra esta falácia na qual muitos de nós acreditamos.