Lembro de
estar na sala de música da minha professora de canto. Eu a tinha visto pela
primeira vez em 2003, cantando no Sergio Porto e, após reencontrá-la em uma
festa, seis anos depois, comecei a ter aulas com ela.
Não sei se
após algumas semanas, ou se logo no primeiro dia de aula, percebi algo: aquela
pessoa vivia de música. Dava aulas de música em uma escola, em uma companhia de
teatro, em uma faculdade de dança, em sua casa. Tinha seu trabalho autoral.
Cantava em uma banda.
Eu havia
sido enganada. Uma narrativa havia permeado minha vida até então: “não se ganha
dinheiro com música”. Ou com arte, em geral. O artista plástico ouve isso, a
atriz também, o dançarino, a escritora etc.
Eu havia
sido enganada não porque minha professora fosse rica ou ganhasse exatamente
aquilo que merecia por suas atividades cheias de dedicação. Não se trata disso.
Falo de viver de música, algo bem mais simples do que ser rico. E
ela vivia. Então, uma mentira me havia sido contada.
Me senti
enganada porque eu já havia feito tantas coisas totalmente contrárias às minhas
ideologias (exemplo-mor: trabalhar como vendedora, durante anos!);
tantas coisas que eu não gostava; tantas fugas daquilo que eu realmente ficava
animada para fazer. Ok, na adolescência é difícil trabalhar em algo que se ame,
certamente. Mas o preocupante não é você ter um emprego ruim em algum momento:
o preocupante é você não ter a menor perspectiva de sair daquilo; é achar que
vai se aposentar fazendo algo que odeia. O ruim, mesmo, é você estar convicto
de que não é possível achar um meio termo saudável entre o masoquismo do varejo
e o estrelato do rock and roll. Certamente existe uma terceira opção. E não ver
isso causa um desânimo perigoso.
Obviamente eu não estou aqui incentivando ninguém a jogar tudo para o alto e viver apenas de
sua arte. Todos sabem que isso não é algo exatamente fácil.
Mas o que eu me dei conta é de que é possível estar envolvido com o que se ama
em diversos âmbitos, e assim se sustentar, mesmo que nem sempre a maré seja muito favorável. E, após
observar a vida de minha professora, conheci inúmeras pessoas que viviam o
mesmo tipo de vida. E estas pessoas certamente sempre estiveram ao meu redor,
mas enxergar algo que não sabemos que existe é mais difícil.
Para enfatizar
a questão de que não se trata de viver nas nuvens, mas exatamente o contrário,
dou mais um exemplo: vivo com um artista plástico. E o que ele faz para viver?
Dá aulas de arte. Esta pessoa tem como assunto a arte, sempre, em sua produção
artística e em sua vida profissional. Esta pessoa se alimenta graças às horas
que ele investe falando sobre Picasso, Matisse e Van Gogh com seus alunos.
Conclusão: caso ele tenha ouvido, em algum momento durante sua infância ou
adolescência, que não conseguiria se sustentar com a arte, podemos concluir que
ele ouviu uma mentira.
Lembro que
um pouco antes das aulas com minha professora, em 2006, comecei a cantar em um
grupo coral. E lá também percebi algo interessante: havia no grupo pessoas que,
além de cantar ali, atuavam em peças, faziam assistência de regência em outros
coros, faziam trilhas para teatro etc. Neste momento também descobri que era
possível ter um grande envolvimento com as artes, de diversas formas. Aquelas
eram as pessoas mais proativas que eu havia conhecido até então, e as mais
envolvidas com assuntos interessantes. Eu não estava pensando na questão do
sustento, ainda, mas as vidas daquelas pessoas eram cheias de momentos
divertidos e experiências marcantes. Foi uma época bastante inspiradora, também.
Por que será
que se perpetua essa mentira? Por que será que se omite o detalhe de que é
possível viver de artes? Em muitos casos, apenas quando já se é “gente grande”
descobre-se o engodo. Daí para um adulto dar o braço a torcer / entender que
tem o direito de seguir algo que gosta, é um pouco mais difícil. A gente tem
essa cultura (insisto em falar nisso) de que é na infância que tudo começa, e
que iniciar uma nova vida depois de adulto é algo risível e menos digno de
respeito. O estrago feito torna-se irreversível, então, mesmo não sendo.
O que eu
demorei muito para entender, também, é que o padrão dos outros geralmente é
diferente do nosso. Descobri que o padrão de vida de muitas pessoas à minha
volta é bastante alto, mesmo que elas achem que não. Meu padrão menos ambicioso
faz com que eu precise de menos para viver (minha fase consumista – que começou
quando eu trabalhava no varejo, olha que coisa – foi encerrada há alguns anos, graças ao convívio com pessoas econômicas e criativas, que me mostraram que a vida é muito mais do que
grana e consumo), mas o padrão de muitas das pessoas que acham que a arte não
sustenta ninguém é elevadíssimo. Elas precisam de muito para viver. E talvez
não pensem que muitos artistas só querem viver com dignidade. Idas frequentes a
restaurantes, escola particular, comprar sem ver o preço, celular caro: tem
gente que vive muito bem (muito, mesmo) sem tudo isso aí que eu falei; ou
porque não gosta, ou porque aprendeu a não desejar o que sua receita não
permite. Talvez não seja necessário ninguém se preocupar com aquela criança que
tem “tendências artísticas” (hahaha). Pode ser que o tipo de vida que ela venha
a almejar seja bem mais simples, sem grandes desejos perdulários, sem buscar
este tipo de “satisfação” que só a grana dá.
Não estou
aqui fazendo ou pregando voto de pobreza, muito menos estou enaltecendo uma
vida sem graça, imóvel, sem desejo. Pelo contrário, sou entusiasta de uma vida
cheia de eventos, encontros e muita arte (falo de quantidade e intensidade:
luxo para todos). E esta arte, esses eventos e esses encontros podem
acontecer mesmo que se tenha pouca grana. Mas se o seu padrão for alto, nunca
conseguiremos entrar em um consenso sobre a quantia necessária para se viver.
Para mim luxo (já que mencionei essa palavra) é poder ver boas peças e bons
shows, ter um teto, me alimentar, viajar de ônibus, caminhar horas pela
cidade. Luxo é ter tempo para gastar comigo.
Foi bom
entender que fui influenciada por uma fala recorrente, persistente e enganosa,
desde sempre. Foi bom entender que há uma mística em volta da arte, e esta
mística se torna verdade de tanto que acreditamos nela. E foi bom entender que
a realidade não necessita de muita mágica, eu diria: quanto mais dedicação,
mais chances de se viver de arte. Não digo que seja fácil; digo que a lógica é
simples.
Penso que o
senso comum derrotista, disfarçado de mística, só serve para endeusar estrelas
da música (desumanizando-as) e boicotar, desesperadamente, os planos de quem
simplesmente deseja viver fazendo algo que gosta. A realidade, felizmente,
tem deposto contra esta falácia na qual muitos de nós acreditamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário