domingo, 25 de fevereiro de 2018

Vivendo pela palavra (e para a arte)




Finalizando o livro Vivendo pela palavra, de Alice Walker, chego ao texto “Por que a galinha balinesa atravessou a estrada?”. Este ensaio me chamou bastante a atenção – e fez com que eu pensasse sobre a forma como levamos adiante (ou não) nossas ideias até que virem texto/música/arte em geral.
Alice, após voltar de uma viagem a Bali, não conseguia esquecer uma cena que presenciara: uma galinha tentando atravessar a rua com seus filhotes. Uma galinha que, enquanto não conseguia chegar ao outro lado, procurava alimentos no chão para si e seus pintinhos. “Eu realmente a vi”, conta. “Tinha a pose orgulhosa e firme das galinhas, que nos dá a impressão de que as aves, especialmente galinhas, têm personalidade e vontade”. Aquela havia sido sua experiência mais marcante em Bali, “ter visto realmente e me identificado com uma galinha”.
Todos os textos deste livro me impressionaram. Eu poderia falar de cada um deles, e seria um prazer, mas o que me chamou a atenção neste, especificamente, foi o fato da escritora ter finalmente resolvido falar sobre algo que pode ser considerado pueril, estranho, despropositado. Como é isso de se identificar com uma galinha? Como é isso de não conseguir esquecer a visão de um animal? Como é isso de ouvir a voz deste bicho – como Alice descreve, na primeira linha do texto –, em tom de cobrança, perguntando: “Por que você está sempre adiando a tarefa de escrever a meu respeito?”. 
Isso me fez pensar no quanto o artista pode ter vergonha de falar sobre o que realmente quer falar. Afinal, sempre haverá críticos para todo e qualquer tópico que escolhermos: natureza, política, amor, literatura, psicologia... Qualquer assunto existente poderá ser ridicularizado e visto com desdém, mesmo que nós, os autores, nunca saibamos disso. Qualquer forma de abordar qualquer tema que seja causará desagrados, e isso é garantido.
Lendo todo o livro de Alice pensei no quanto muitos de nós nos importamos com a recepção daquilo que fazemos – e, principalmente, com a opinião daqueles que mais admiramos (acho que uma boa prova de fogo na vida, em geral, é não se deixar levar pelo caminho que as pessoas mais importantes para nós nos impõem/sugerem). Porque Alice também escreve sobre os olhos de um cavalo (no qual via um enorme tédio, por viver sozinho no pasto); sobre seus próprios cabelos (suas “antenas”); sobre o sonho onde era namorada de Langston Hughes; sobre outro sonho onde uma anciã lhe dava o título deste mesmo livro, Living by the word; nos mostra uma carta que escreveu para Deus – e tudo isso é íntimo e pessoal demais, talvez feminino demais (ha!). Neste mesmo livro, no ensaio “No recesso da alma”, Alice fala sobre K. T. H. Cheatwood, que a criticou duramente, por exemplo, por escrever uma poesia sobre o estupro sofrido por sua tetravó, e por ver a escritora como uma “amante das afetações burguesas”, entre tantas outras acusações mais graves (como ser uma escritora negra “no fundo cheia de ódio pelos negros”, escreveu o crítico, também negro).
Alice Walker não tem vergonha de ser extremamente espiritual. Não pode abafar o que precisa escrever, pois isso seria abafar quem ela é. Esta é uma das mais fortes características de sua escrita – falar de Deus, de meditação, de sonhos, sua conexão com os animais: falar do transcendental. Que tipo de escritora seria Walker se abafasse o que tem de mais específico? O que seria de sua escrita se ela se importasse com a opinião de quem acha tudo isso ridículo?
Daí quis me perguntar: o que acontece conosco quando deixamos de falar algo que precisamos falar? Qual o efeito de uma palavra que nós censuramos em uma canção ou texto, por exemplo, por medo do julgamento? Qual o prejuízo interno quando censuramos a ideia inteira de um texto, antes mesmo de começarmos a escrevê-lo?
O que acontece quando podamos quem somos graças à preocupação excessiva com o impacto daquilo que temos a dizer?
Ontem me mostraram esta fala do artista Artur Barrio, e acho que ela tem muito a ver com tudo o que tenho pensado e sentido ultimamente: “Essa preocupação com o público, de atingir determinada corda vibratória para que isso deflagre um tipo de comunicação ou participação na obra, eu me afastei completamente disso e não tenho nenhum interesse em saber qual será a reação do público, ou se eles vão aceitar ou não. Eu faço o trabalho como se fosse estritamente para mim, não no sentido de usufruí-lo ou contemplá-lo, mas no ato de fazê-lo, criá-lo. (...) Eu não vou me dar ao luxo de pensar no outro. É um egoísmo, mas é um egoísmo criativo.”
Esta fala de Barrio me fez pensar, também, em outro aspecto relativo aos “outros”, além do da crítica: o do reconhecimento. Nossa arte, em si, nos satisfaz? Ou, enquanto ela for independente, pouco reconhecida, sempre estará em falta? Enquanto não “chegarmos lá” (onde fica esse lugar, “lá”?), a arte sempre nos trará frustração neste sentido? Se soubéssemos, hoje, que o que fazemos jamais alcançará as massas, e que as coisas continuarão como estão hoje (com pouco alcance), o que aconteceria? Largaríamos o que fazemos? Ou continuaríamos fazendo nossa arte, ainda com ânimo, não nos importando com as consequências desta (e sim com a criação, em si)? 

Nenhum comentário:

Postar um comentário