terça-feira, 31 de julho de 2018

Errância


O que nos impede de fazermos algo artisticamente? O que nos impede de iniciarmos uma vida de cantores, atores, escritores, poetas etc.?
Falando por mim, mas desconfiando (=tendo certeza) de que este seja o caso de muitos outros, vejo que o que me impedia era aquela tal “autorização” de alguém. Era preciso fazer um curso antes, era preciso ter anos e anos de aprendizado para, só então, começar a fazer algo – cheia de medo e me achando péssima.
Fiquei pensando que este foi o meu caso em algumas áreas da arte – menos na música. Essa eu subestimei bastante, e por isso (tudo tem um lado bom) achei que não era necessário fazer um preparatório antes de começar a cantar. Saí cantando e, no meio disso tudo, fui me encontrando e me perdendo, me encontrando e me perdendo de novo e por aí vai. Fiz um curso de teoria musical, por exemplo, mas apenas quando já cantava em um grupo vocal e vi que aquilo me ajudaria com as partituras. O estudo só me ajudou. As aulas de canto que fiz, mais tarde, também foram apenas uma valiosa manutenção da voz que eu já usava em shows e gravações. Felizmente não usei este ensino como freio, mas como auxílio para algo que eu já colocava em prática.
Mas quis escrever este texto quando percebi que o que me ajudou, mesmo, foi arriscar e pagar alguns micos, passar uns vexames e vergonhas. Olhar para trás e ver que algumas coisas que fiz musicalmente (canções ou apresentações) não eram/foram lá muito boas, foi ótimo. No sentido de que eu fui lá e paguei o mico que é preciso pagar quando se quer fazer algo. Querer estrear já brilhando pode ser armadilha para um adiamento eterno. Só passando por uns vexamezinhos (alguns destes só vistos como vexame anos e anos depois) é possível ir amadurecendo e entendendo o que é necessário modificar.
O que nos mina a energia, mesmo, é jamais iniciar. Nunca haver este rito de passagem. Nunca existir o marco zero de seu processo. Iniciar é fundamental! Fazer mal feito faz parte, para depois ir moldando este mal feito; ir fazendo deste troço mal acabado algo parecido com o que você quer dizer. É frustrante não sentir o gosto da alegria de começar algo e nem o gosto da decepção por este algo não estar ficando “lindo” como se imaginava. É muito importante se ver fazendo, e se ver capaz; importantíssimo “mandar mal” e seguir em frente. Penso que um estado melancólico de vida muitas vezes tem a ver com este não iniciar ou este não concluir. A criatividade é essencial para a vida, e é material que todo ser humano tem.
E este processo não acaba. Não é à toa que tantos artistas nomeiam seus últimos trabalhos como os “preferidos”. Há uma melhoria contínua, uma tradução cada vez mais exata daquilo que se quer expressar. Nossos trabalhos iniciais devem ser sempre vistos com respeito e carinho (pois foram os precursores de tudo), mas é saudável, penso, que eventualmente tenhamos críticas a estes. (Caso não tenhamos, ótimo!) Os primeiros trabalhos, as primeiras vezes, os primeiros riscos, as primeiras tentativas estranhas e desajeitadas são parte fundamental de nossa melhoria e do ponto onde estamos hoje – certamente um pouco mais avançados em nossa arte do que antes.
Há coisas recentes que fiz e não curto muito. Mas como eu teria feito as últimas canções, das quais gosto bastante, se não tivesse exercitado com essas anteriores? Como eu teria entendido e pensado “não é assim que quero que minhas canções sejam” se não as tivesse finalizado? Eu teria ficado tão desanimada que não teria seguido criando outras canções.
Está na hora da gente pagar os micos que a arte exige de nós. Está na hora da gente ficar se sentindo vulnerável e com vergonha por dias por algo que fizemos. É importante confundir a melodia, esquecer a letra, errar o tom, desafinar, ir melhorando, ir se gostando, ir sentindo seguro. E continuar errando, sempre, porque é inevitável e faz parte dessa coisa tão boa para a alma que é ser artista.
Para finalizar, deixo o refrão de “Errática”, letra de Mauro Aguiar com melodia de Chico Saraiva: “Eu recorro ao erro sempre que posso, e erro, e erro e erro... Sem remorso!”.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Sou da América, sul da América, South America!




Aprendi o inglês para querer entender as letras do Blind Melon. Aprendi pedindo a meu pai que as traduzisse a meu lado, e pedia a ele toda noite uma aula. Deu certo. Em pouco tempo ele já estava corrigindo as minhas cartas para os integrantes da banda, e fazendo avaliações positivas a respeito destas cartinhas. Não era a tal "facilidade" para o idioma: eram 12 anos ouvindo meu pai lendo trechos do P. G. Woodehouse em voz alta, era muito rock em alto volume, era o videogame dos meus irmãos com instruções em inglês, era todo um ambiente de língua enrolada em casa. Como não achar natural?
E foram muito mais do que 12 anos ouvindo muito rock internacional e música norte-americana, muitos filmes grrrrringous em VHS, vários livros neste idioma. E diversas expressões em inglês: "djísâs crrrráist", "mái god", "let's muuuuv".
(Foi bom reconhecer, há poucas semanas, em uma ação poético-artística de Rafa Éis – cuja proposta era, durante um passeio pela UERJ, lembrar algo valioso que se havia aprendido na infância –, que graças a meu pai aprendi um idioma que me ajudou muito durante a vida, e que até me sustentou por bastante tempo. Foi bem importante reconhecer isso.)
O primeiro livro que li em inglês, as aulas de inglês da escola (pública), que eu amava... A correção "Ella FitzGUérald" – "Não: Ella FitzDJérald"! O riso quando falei Portixed, e não Portisrréd.
Em 2018 me vejo assistindo a um filme latino-americano por noite; me vejo procurando o livro do Ernesto Sábato para reler (acho que perdi!), me vejo assistindo vídeos de músicos paraguaios, me vejo com saudades de Montevideo. E aí, vivendo todo este novo ambiente, foi inevitável perceber o quanto sempre fui extremamente norte-americanizada/inglesada. Porque o que leio/ouço/assisto da cultura hermana hoje em dia ainda não chega nem a 1%, diria, de tudo o que já consumi em inglês.
Apesar da América Latina e seu idioma sempre terem parecido marginais e especiais, ambos (língua e continente) nunca haviam recebido minha atenção. É, muito legal, mas queria tanto conhecer Chicago e sua música! É, muito legal, mas deixa eu ver o quinquagésimo filme em inglês aqui. Deixa eu ver o Daily Show, um (ótimo) programa que assisto quase todo dia no YouTube e que faz com que eu acabe sabendo mais da política de lá do que a de meu país.
Nunca vi com tanta força a influência que a cultura norte-americana sempre teve em minha vida, nunca observei isso tão bem quanto agora. É algo tão natural (um brasileiro consumir pesadamente a cultura norte-americana) que demorei para entender que nesse processo a cultura brazuca ficou um pouco para trás. E a latino-americana, então, nem se fala. (Aliás, por que a relação com os hermanos argentinos é de rivalidade/comparação?)
Ter tido acesso a tantas culturas e literaturas diferentes -- trabalhando em um sebo, viajando, fazendo faculdade, tendo acesso à internet desde 1996 -- não me impediu de ser bastante norte-americanizada. Aliás, ter acesso à internet mais incentivou isso do que o contrário, diria eu. Em 2006, quando comecei a cantar em um grupo vocal, me liguei bastante em música brasileira, e isso ajudou muito em minha descolonização. Mas ainda há muito a observar e principalmente muito a absorver de outras culturas. O mundo é gigantesco e não cabe em um só país, ou dois.
Continuo querendo conhecer Chicago e sua música; continuo lendo os livros de Jon Ronson e Andrew Solomon. São ótimos e me ajudam a viver melhor – como tantas outras coisas feitas/existentes no idioma inglês. Mas foi ótimo começar a equilibrar todo esse grande conjunto de coisas que carrego comigo há muito tempo com outras coisas e culturas – culturas essas tão ricas, tão próximas, tão irmãs. E que também me ajudam a viver muito, muito melhor.
As culturas fora do eixo Europa/EUA geralmente me levam a uma grande identificação. "Todos os longes se parecem" -- e o que não for Europa/EUA é "longe". Todas estas têm um quê de Brasil: árabes e brasileiros se identificam; indianos e brasileiros creio que se identifiquem também; africanos e brasileiros se identificam muito. Talvez até o Oriente se identifique muito com o Brasil (musicalmente, sei que sim). Acho que é nossa “marginalidade”, no sentido de sempre sermos “o outro”, que nos une. (Bem louco isso do “resto” do mundo todo ser “o outro” em relação à Europa e aos EUA...)
Mas falando dos países latinos, especificamente, vejo que estes estão sendo, para mim, como uma grande novidade empolgante (e penso que talvez o sejam para qualquer brasileiro que esteja disposto a conhecer, com o coração aberto, o que há na América Latina). É interessante observar nossa proximidade geográfica e a ironia da distância que ainda nos separa. Mas o bacana é que, mesmo havendo tantas semelhanças entre nós, sempre teremos muito a descobrir uns com os outros, infinitamente.

sábado, 7 de julho de 2018

Durma-se com um barulho desses


Durma com esse barulho: talvez você esteja  vivendo exatamente o que sempre quis viver.
Durma com esse barulho: talvez nenhum outro sonho seu seja tão fascinante quanto a sua atual realidade.
Durma com esse barulho: talvez você sempre tenha querido isso que tem agora, mas no afã de mostrar algo, no afã de ser enxergado, ignorou a mais simples das realidades.
Durma com esse barulho: como dizem, não é tão difícil ser feliz, mas o que estraga tudo é querer ser mais feliz que o outro. 
Durma com esse barulho: talvez seu principal anseio seja apenas potencializar o que você já faz.
Durma com esse barulho: o que te move não é charmoso, não pega bem e não é legitimado por ninguém. 
Durma com esse barulho: sua satisfação é invisível.