quarta-feira, 21 de junho de 2017

Pra que serve a memória?

Por muito tempo tive vergonha de meu excesso de memória. Percebi cedo, ainda na pré-adolescência, que minha memória afiada e minha precisão para fatos, datas, rostos, nomes e lugares era vista como algo estranho. Nada traumatizante, mas ficava evidente o quanto aquilo me tornava um pouco esquisita aos olhos de muitos. Por que diabos eu me apegava tanto a detalhes (ou coisas que eram vistas como detalhes)? Percebi que esse meu lado era visto como uma coisa meio nerd, até meio stalker. Ou, pegando mais leve, um lance desengonçado. Faltava em mim um jeito whatever. Tinha que ser mais desapegada, deixar para lá. "Hã? Quê? Não sei quem é, não." Tinha que ser mais prafrentex, viver o momento, pois quem vive de passado é museu. Mesmo que seja o passado de uma semana atrás: esquece. "Credo, você lembra de tudo."
Então a gente vai entendendo que é meio esquisitão e vai se adaptando, não largando mão da própria memória, mas às vezes disfarçando e vivendo um pouco mais como todo mundo, aparentemente. Continua lembrando de todos os detalhes, dos nomes (e sobrenomes), da frase exata que a pessoa falou, do dia e da hora aproximada daquele encontro, do local onde tal coisa aconteceu. Só não sai espalhando aos quatro ventos. Deixa para falar com os pares (aqueles dois seres que você conhece que também lembram de tudo) e segue.
Demorou muito, mas acabei entendendo para o que é que minha memória servia. Fui percebendo que os detalhes que grudam em minha cabeça me ajudam não apenas a fazer várias conexões: me levam a escrever. E escrever, hoje vejo, é uma das coisas que mais me dá prazer e satisfação. Então finalmente achei uma justificativa para esse excesso de nomes, cores, dias, anos, livros, filmes, frases, falas.
Minha memória serve para contar histórias sem um esforço abissal, e com bastante prazer. Tem material demais na cabeça, tem história demais, descrição demais, tem referência demais. É só jogar no papel e, a partir daí, suar. Certamente é cansativo e demorado, porque é preciso aparar as arestas aqui e ali, rever, corrigir, e isso leva tempo. Mas nunca falta assunto, nunca falta tópico. E é fácil ligar os pontos, emendar assuntos. Não se trata da tal inteligência (conceito maroto, esse!): é só memória, mesmo, e muita. 
               A mim me parece desperdício viver certas coisas e não elucubrar sobre estas na escrita, não organizar as ideias em textos. Preciso aliviar a mente e poder dar certos assuntos por encerrados escrevendo sobre os mesmos. E também sinto que preciso usar aquela palavra que me encanta desde criança, torná-la parte de uma canção. Preciso mencionar aquele homem que vi, suave e tranquilo, falando sobre medicina. Preciso escrever o belo nome daquele imigrante árabe, para eternizá-lo em mim. Não vejo nada disso como simples fatos soltos, bobos, pois tudo isso que me marca me ajuda a construir a pessoa que sou.
Eu gosto de traçar paralelos, e a memória me ajuda a fazer isso. Gosto de analisar o meu ciúme com a ajuda das frases inesquecíveis de Gikovate e Calligaris. Gosto de ver o quanto a informação da palestra que vi se relaciona com o que aquele amigo me disse. Gosto de lembrar vivamente do que disseram Amir Haddad, Newton da Costa e Gero Camilo sobre a beleza, e por isso querer escrever um texto sobre o assunto, utilizando como contraponto o que tantos e tantos outros falaram sobre a feiura. Gosto de reparar que foi Caetano quem me ensinou a utilizar referências a torto e a direito, a abusar daqueles versos (nem maus, nem meus) que podem chegar para enriquecer o que faço. Gosto de lembrar de tudo.
Sempre serei aquela pessoa que se apresenta dez vezes para a mesma pessoa pouco memoriada (ou: integrante do clube dos whatever). É estranho, com certeza. Mas ter um belo estoque de material prontinho para ser utilizado-escrito me interessa bem mais do que qualquer outra coisa. 
E quanto ao desmemoriado, aproveito e me apresento a ele pela décima-primeira vez, para não ter erro.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Outro teste

Há uma semana fui participar de um teste para um musical. Ao chegar lá, quase voltei: vi que era a mesma equipe de um teste traumático que eu fizera em 2014, para o qual havia esperado cerca de cinco horas apenas para ser ouvida (ou quase ouvida: um dos membros da banca dormiu, o que entendo perfeitamente – se eu estava cansada, ele estava ainda mais, tendo que avaliar tantas pessoas há tantas horas –, mas sem dúvidas isso deixou a conjuntura ainda pior). Pois é, sou tão bissexta* nesse lance de teste que não me ligo no nome das produtoras e das equipes, então dei o mole de ir num teste organizado pela mesma equipe que havia deixado a mim e a várias outras pessoas esperando por cinco horas.
              (*Digo que sou bissexta porque só devo ter feito uns quatro testes para musical na vida.)
Me saí pessimamente mal no teste. Cantei uma linda música, mas havia ensaiado pouco (a tal da falta de tempo que, quando a gente quer mesmo, a gente dribla) e, é claro, exatamente por não estar preparada, fiquei nervosa. Mas antes mesmo de entrar na sala para cantar – dessa vez a espera foi de duas horas – eu já estava pensando no quanto aquele ali não era um ambiente no qual eu me sentia bem. Não digo isso pelas pessoas (até fiz uma amizade lá), mas pela inevitável atmosfera de competição. Não dá para ignorar o fato de que apenas alguns entrarão e muitos ficarão de fora. Mas não fui embora por saber que, se o fizesse, eu ficaria muito decepcionada comigo mesma por não ter nem tentado. [obs.: teria sido muito melhor ter ido embora.]  
Na espera para o teste, naquele ambiente apinhado de atores e cheio de tensão, lembrei muito de um papo que tive com uma amiga compositora, há alguns meses. Estávamos conversando sobre nossos trabalhos e falamos sobre a questão dos festivais competitivos. Ela me disse que não gostava e não queria, de jeito nenhum, participar de festivais. Não gostava da tal atmosfera de comparações e não gostava da forma como os participantes acabavam se portando (infelizmente embarcando em um clima de disputa). Essa compositora consegue manter seu trabalho de forma autossustentável, pois alia suas metas à sua realidade financeira. Mas ver, frequentemente, vários amigos próximos ganhando grana em festivais não fez com que ela se convencesse de que o mundo festivaleiro fosse uma boa. Lembrei muito dela durante a espera para aquele teste. Pensei por que diabos eu estava desrespeitando minha ideologia ao participar de algo que eu não concordava (e não tinha nem a desculpa de estar fazendo isso pela primeira vez, só para saber como era).
Fui tão mal no teste de canto que não fiquei para fazer a cena de dança ou de interpretação. (Aliás, mais uma crítica: embora geralmente estivessem avisando, como testemunhei, a cada ator se o mesmo estava liberado ou não, a mim não disseram nada quando saí da sala. Fiquei esperando uns quinze minutos ali, bem na frente dos assistentes, e nem tchuns. Quando finalmente perguntei – a gente evita perguntar para não ficar enchendo o saco, né? – a resposta foi que sim, eu já estava liberada. Se eu não perguntasse, quanto tempo teria ficado até que alguém se lembrasse de me dar uma avisadinha básica?) Fiquei estranhamente feliz por ir embora mais cedo do que esperava, sentindo-me aliviada por sair dali, e com mais material para me pensar como artista. Voltei para casa elucubrando sobre o quanto havia sido desnecessário me dispor a ir, voluntariamente, a um ambiente onde fico tão estressada que acabo cantando mal uma canção relativamente fácil de cantar.  
Mas acontece que sou uma amante das artes cênicas, e procuro sempre estar colocando esse meu lado teatral em ação. Os testes, apesar de péssimos, podem proporcionar essa vivência incrível no teatro sem que se precise fazer parte de uma companhia (algo muito bacana, porém companhias implicam um longo e sério compromisso, difícil para quem já se dedica a outra área artística – há quem consiga, eu ainda não). Eu desejei passar para cada um dos quatro testes que fiz na vida. E certamente essa peça será uma experiência linda para os atores e músicos que fizerem parte do elenco. E espero algum dia ainda fazer um espetáculo musical, mas consegui ver que, para que isso aconteça, o processo tem que acontecer de outro jeito. Talvez em produções menores, menos comerciais... Senão – novamente – pisarei nas minhas ideologias e crenças: se sou tão contra a competição, que faço eu em um ambiente onde a tônica é claramente ver “quem são os melhores”?
(Fiz ano passado um teste para outro musical – na verdade foi o único teste no qual eu acho que de fato me saí bem cantando – e ali todo o processo foi bonito e generoso. Em nenhum momento me senti desconfortável, e diria que nem havia clima para que nenhum dos participantes se sentisse assim. Espero que essa produtora continue fazendo muitos espetáculos e que algum dia eu faça parte de alguma montagem, pois ali, sim, não me desrespeitei nem um pouco – apenas cresci com a experiência. Talvez seja possível um ambiente de avaliação saudável, no fim das contas...)
               Finalizando, lembrei do musical Quando toca o coração, da amiga Virginia Maria, que vi no final de 2014. Fiquei muito feliz por ela, que fez uma campanha de arrecadamento coletivo e colocou um objetivo em prática, sem ficar esperando que algum dia alguém lhe desse uma “chance” para fazer o que queria. Ver sua peça me inspirou desde o primeiro dia, mas depois desse meu teste a admirei ainda mais, por ter criado para si a oportunidade de cantar e atuar. Quem sabe não é essa a solução?

segunda-feira, 5 de junho de 2017

As viagens, os outros


Passei a limpo hoje um diário de viagens. Desde fevereiro eu estava com estas anotações pendentes, e finalmente passei tudo para um caderninho mais adequado. Acabei relembrando muito do que vi e senti naquelas duas semanas de viagem.
Aí, recordando de tanta coisa, pensei no quanto viajar é bom. Mas, principalmente, lembrei algo que compreendi há não muito tempo: viajar não tem nada a ver com vangloriar-se, mas sim com ter noção do quão pequeno se é.
Em 2015, quando conheci a Alemanha, vi isso claramente. Não falo alemão, e desde o primeiro momento em que o motorista do ônibus do aeroporto se deu ao trabalho de falar em inglês comigo, entendi que enquanto eu ficasse naquele país eu estaria simplesmente contando com a boa vontade das pessoas. E um ano depois, em outra ocasião, percebi que em outros países geralmente não levamos conosco toda aquela legitimidade que o próprio país, a própria cidade, nos dão. Os amigos e a família não estão presentes, não podem atestar quem somos (e a gente quer esse atestado sempre que possível – vai que alguém duvida de nossa bondade e ótimo caráter?). Viajar é um pouco zerar todas as informações importantíssimas – leia-se: inúteis – sobre nós. Então fora de minha zona de conforto eu sou quase isso: um zero ambulante. 
Entendi, com o tempo, que viajar para outro país não te faz melhor que ninguém. Ironicamente, às vezes pode te fazer um pouco pior, se você usar estas experiências para diminuir outras pessoas.
Embora a situação tenha melhorado e muitos brasileiros tenham conseguido ir para o exterior pela primeira vez nos últimos anos (até quando isso vai durar? Porque está difícil, para alguns, dividir avião com gente pobre... Ai, Danuza Leão, vai ser difícil esquecer a patacoada que você falou! Ai, golpistas, eu sei que dói e que vocês vão fazer de tudo para que os anos 90 voltem com toda a força...), falar sobre viagens – nacionais e internacionais – ainda é algo que pode causar desconforto, por parecer arrogância. Eu me sinto estranha ao falar disso, mas vejo o quanto é importante. Todos deveriam ter o direito de viver essas experiências e de falar sobre elas. 
Lembrei, também, do quanto aprendemos em viagens, e do quanto ficamos bem mais atentos a novas percepções. As ideias não escapam tanto, acho... Parece que se fixam mais, parece que nossos sentidos estão mais “acesos”, conectados. Será por estarmos mais embevecidos, felizes? Daí esse encanto deixa tudo mais fácil...? Talvez.
Certamente foi por embevecimento que, em 2015, escrevi uma canção, “Portobello Road”, para a rua homônima. Andando por essa região de Londres, a música “Nine out of ten”, de Caetano, não saía de minha cabeça. Quando vi o Electric Cinema, então, o volume da canção aumentou ainda mais. Chegando ao Brasil, vi meu diário de viagem e as anotações que eu havia feito sobre Londres e seus personagens. Gostei de citar Gil (“Back in Bahia”) e Caê em uma só canção, e poder misturar tudo isso à felicidade que senti por estar em um país que eu sonhava conhecer desde os 12 anos – Oasis, Blur e várias outras bandas britânicas haviam despertado em mim esse fascínio pela Inglaterra.
Ainda não cantei em outros países com meu trabalho solo, na verdade ainda mal saí do Rio com ele. Mas quero muito, pois viajar e cantar é a união perfeita de duas coisas que adoro. Na verdade, ultimamente tenho me sentido mais animada a viajar se for para cantar – embora dê bem mais trabalho.
Falando nisso, no livro Teatro Oficina: onde a arte não dormia, Ítala Nandi conta sobre a viagem que o grupo Oficina fez a Paris, em 1968, para uma temporada de O rei da vela – às próprias custas. Adoro o trecho em que Ítala fala: “(...) aquela viagem estava nos custando todas as economias. Estávamos seguindo a teoria de Zé Celso – ‘é preciso arriscar’ –, que nós todos assinávamos embaixo. Viajar era sagrado, e não é a toda hora que acontece uma chance dessas.” Adorei tudo nesse depoimento: o risco, o sagrado e a oportunidade. Aliás, o livro todo é inspirador e recomendo muito [obs.: eles estavam em Paris em maio de 68!].
Ao mesmo tempo, penso que não podemos, de jeito nenhum, ceder a qualquer tipo de pressão. Se não gostamos de viajar, que não viajemos. Diversão não pode ser protocolar, nunca. (E ninguém deveria estranhar quem não curte pegar a estrada – é uma mera questão de gosto.)
Aliás, Paulo Leminski e Fernando Pessoa são grandes exemplos de pessoas incríveis que se deslocaram relativamente pouco. Será que eles precisavam viajar? Para criar, certamente que não, e suas obras atestam isso muito bem. Pessoa, inclusive, abordou o assunto “viagem” como poucos escritores o fizeram, não tendo saído muito, durante a vida adulta, de sua querida Lisboa.
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras.” (Pessoa/Álvaro de Campos)


P.S.: London, London... Como é irônico mencionar, agora, a paz que você me trouxe há menos de dois anos.