Por muito tempo tive vergonha de meu excesso de memória. Percebi cedo, ainda na pré-adolescência, que minha memória afiada e minha precisão para fatos, datas, rostos, nomes e lugares era vista como algo estranho. Nada traumatizante, mas ficava evidente o quanto aquilo me tornava um pouco esquisita aos olhos de muitos. Por que diabos eu me apegava tanto a detalhes (ou coisas que eram vistas como detalhes)? Percebi que esse meu lado era visto como uma coisa meio nerd, até meio stalker. Ou, pegando mais leve, um lance desengonçado. Faltava em mim um jeito whatever. Tinha que ser mais desapegada, deixar para lá. "Hã? Quê? Não sei quem é, não." Tinha que ser mais prafrentex, viver o momento, pois quem vive de passado é museu. Mesmo que seja o passado de uma semana atrás: esquece. "Credo, você lembra de tudo."
Então a gente vai entendendo que é meio esquisitão e vai se adaptando, não largando mão da própria memória, mas às vezes disfarçando e vivendo um pouco mais como todo mundo, aparentemente. Continua lembrando de todos os detalhes, dos nomes (e sobrenomes), da frase exata que a pessoa falou, do dia e da hora aproximada daquele encontro, do local onde tal coisa aconteceu. Só não sai espalhando aos quatro ventos. Deixa para falar com os pares (aqueles dois seres que você conhece que também lembram de tudo) e segue.
Demorou muito, mas acabei entendendo para o que é que minha memória servia. Fui percebendo que os detalhes que grudam em minha cabeça me ajudam não apenas a fazer várias conexões: me levam a escrever. E escrever, hoje vejo, é uma das coisas que mais me dá prazer e satisfação. Então finalmente achei uma justificativa para esse excesso de nomes, cores, dias, anos, livros, filmes, frases, falas.
Minha memória serve para contar histórias sem um esforço abissal, e com bastante prazer. Tem material demais na cabeça, tem história demais, descrição demais, tem referência demais. É só jogar no papel e, a partir daí, suar. Certamente é cansativo e demorado, porque é preciso aparar as arestas aqui e ali, rever, corrigir, e isso leva tempo. Mas nunca falta assunto, nunca falta tópico. E é fácil ligar os pontos, emendar assuntos. Não se trata da tal inteligência (conceito maroto, esse!): é só memória, mesmo, e muita.
A mim me parece desperdício viver certas coisas e não elucubrar sobre estas na escrita, não organizar as ideias em textos. Preciso aliviar a mente e poder dar certos assuntos por encerrados escrevendo sobre os mesmos. E também sinto que preciso usar aquela palavra que me encanta desde criança, torná-la parte de uma canção. Preciso mencionar aquele homem que vi, suave e tranquilo, falando sobre medicina. Preciso escrever o belo nome daquele imigrante árabe, para eternizá-lo em mim. Não vejo nada disso como simples fatos soltos, bobos, pois tudo isso que me marca me ajuda a construir a pessoa que sou.
A mim me parece desperdício viver certas coisas e não elucubrar sobre estas na escrita, não organizar as ideias em textos. Preciso aliviar a mente e poder dar certos assuntos por encerrados escrevendo sobre os mesmos. E também sinto que preciso usar aquela palavra que me encanta desde criança, torná-la parte de uma canção. Preciso mencionar aquele homem que vi, suave e tranquilo, falando sobre medicina. Preciso escrever o belo nome daquele imigrante árabe, para eternizá-lo em mim. Não vejo nada disso como simples fatos soltos, bobos, pois tudo isso que me marca me ajuda a construir a pessoa que sou.
Eu gosto de traçar paralelos, e a memória me ajuda a fazer isso. Gosto de analisar o meu ciúme com a ajuda das frases inesquecíveis de Gikovate e Calligaris. Gosto de ver o quanto a informação da palestra que vi se relaciona com o que aquele amigo me disse. Gosto de lembrar vivamente do que disseram Amir Haddad, Newton da Costa e Gero Camilo sobre a beleza, e por isso querer escrever um texto sobre o assunto, utilizando como contraponto o que tantos e tantos outros falaram sobre a feiura. Gosto de reparar que foi Caetano quem me ensinou a utilizar referências a torto e a direito, a abusar daqueles versos (nem maus, nem meus) que podem chegar para enriquecer o que faço. Gosto de lembrar de tudo.
Sempre serei aquela pessoa que se apresenta dez vezes para a mesma pessoa pouco memoriada (ou: integrante do clube dos whatever). É estranho, com certeza. Mas ter um belo estoque de material prontinho para ser utilizado-escrito me interessa bem mais do que qualquer outra coisa.
E quanto ao desmemoriado, aproveito e me apresento a ele pela décima-primeira vez, para não ter erro.