terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O mel do melhor

Admiro muito Cátia de França e Sixto Rodriguez. São dois artistas que me inspiram. As letras de Cátia, sua pegada no violão, suas melodias, seu jeito de cantar. A poesia de Sixto, suas letras carregadas de política, sua voz. Mas também amo as atitudes destes dois, a forma como se mostram. E ambos têm algo muito interessante em comum: uma vaidade que parece ser ínfima, um ego que parece não precisar ser lustrado. E ambos são donos de uma aparência marcante, que não atende às expectativas do tal "mercado" (se atendesse, jamais seria marcante).
Pensando nisso, outro dia me toquei de algo: acho que nunca conseguiremos tirar destes artistas nada além daquilo que eles têm de melhor. Acho que eles nunca oferecerão nada além disso, sabe? Felizmente, pelo visto só teremos acesso a seus momentos mais brilhantes – ou seja, sua arte, o mel do melhor.
Não digo isso querendo endeusar Rodriguez ou Cátia de França, muito pelo contrário: digo isso porque acredito que a humanidade deles é visível, escancarada, e não há, ali, vontade de esconder isso. A perfeição (aquela, idealizada) não é para eles.
Não se trata, aqui, de reforçar aquela noção cristã que prega a culpabilização do corpo. Penso que o corpo, quando celebrado, nos salva de problemas enormes, nos faz entender coisas que a mente, sozinha, não alcança. O corpo é uma arma maravilhosa. E a questão é exatamente esta: o corpo, todo tipo de corpo, deve ser celebrado, vivido com alegria, e merece se livrar das couraças que vamos criando durante a vida. E entendo que este corpo só pode salvar nossas mentes se for amado incondicionalmente. Fora disso, torna-se prisão – mais uma para a nossa coleção de cárceres voluntários. (E amá-lo incondicionalmente pode significar modificar o próprio corpo, da forma que se desejar, de acordo com a própria vontade, e não a do outro. Mas qual é a nossa real vontade? Rápido exemplo: na adolescência me achava bonita, e fiquei chateada quando percebi que estava começando a gostar menos de mim com o passar do tempo, graças a algumas piadinhas esporádicas de terceiros em relação ao meu nariz. Se eu quisesse modificar meu rosto devido a isso, seria a pior das razões. É disso que estou falando.)
Também não exalto aqui a postura de Cátia e Sixto segundo um gosto pessoal em relação à beleza. Mas tenho consciência de que estes dois artistas não atendem a padrões exigidos a todos (padrões estes que apenas um seleto grupo consegue atender, nascendo do jeito "certo" ou corrigindo isso através de intervenções cirúrgicas – daquelas inspiradas pelos piores motivos, como mencionado acima – e uma dispendiosa manutenção do corpo).
A pouca vaidade e o pouco ego que vejo nestas duas grandes figuras me fez pensar no quanto gosto desta escolha de vida. O quanto é bom poder me espelhar em artistas que procuram falar de sua arte, e não tanto de sua imagem. Nenhum dos dois tem cara de artista (hahahaha!), aquele artista, né, que precisa se cuidar, oras, e caprichar no visual, pô, alimentar bem a timeline do Facebook, colocando fotos e mais fotos, mesmo que não tenha muito a dizer naquele exato momento (mas é preciso postar, “para não ser esquecido", entende? – essas coisas nas quais a gente acaba acreditando e que apenas servem para gastar nossa energia).
O que me fascina nestes indivíduos que resolvi abordar aqui é esta pouca importância que dão às suas imagens. Parecem desperdiçar pouco tempo com isso, parecem não ser escravos das aparências. Para uma pessoa vaidosa como eu (e que ainda assim se espanta com a excessiva vaidade no mundo da música, especificamente, e no mundo todo, em geral), observá-los é valioso; deixar-me influenciar por eles, melhor ainda. Saber que posso viver minha arte sem atender a demandas loucas (que se tornaram normas tácitas) é muito bom. Não preciso me preocupar com imagem, caso não queira. Meus momentos criativos não serão piores se minha aparência for insignificante. Penso que podem ser até melhores. 
Este assunto (beleza) é um que me intriga há tempos, e falo e penso nisso em grande parte de meu tempo. E ao falar sobre este assunto vou me livrando, aos poucos, de estigmas, de vícios, de ideias nocivas que foram me vulnerabilizando e que sei que vão fragilizando a todos nós. É visível: somos uma sociedade afetada por esta noção cruel de que alguns deram sorte na loteria física, outros não. 
Vejo uma diferença abissal entre se cuidar (gostar de si) e ser escravizado por uma obsessão com a própria imagem. Na realidade penso que quando nos tornamos obsessivos estamos claramente indo mal no quesito amor próprio – apenas a aparência nos legitima, nada mais. E a aprovação dos outros é o troféu. Nada mais frágil!
O que Rodriguez e Cátia me passam é algo muito positivo, mesmo que ambos tenham (certamente) suas crises, seus problemas, suas insatisfações. Mas o que me inspira é ver esta postura tão contra a corrente, esta atitude de quem se segura em sua música, sua arte. A imagem destes dois é apenas um detalhe inevitável – e, talvez exatamente por isso, seja uma imagem das mais belas.

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