Gosto muito de uma frase de Gianfrancesco
Guarnieri que encontrei em sua biografia-depoimento Um grito solto no ar: “Todo autodidata, creio eu, sente alguma
insegurança em relação ao seu trabalho, e está sempre em busca de alguém que
possa dar uma benção”.
Concordo plenamente. Ao mesmo tempo em que o
pensamento antropofágico (só me
interessa o que não é meu) é maravilhoso, há outro pensamento, extremamente nocivo e de sentido contrário a esse,
que prega: o paraíso são os outros.
É o outro que vai dizer: “Você presta”. Porque se
nós tivermos essa consciência de que prestamos, grande coisa: isso não quer
dizer nada, não tem valor algum. Se o outro aprovar algo nosso, eba, vitória! Mesmo que ele aprove exatamente aquilo que fizemos de mais medíocre, o simples fato dele ser outro já é uma grande conquista. Pode ser qualquer um, o que importa é não ser a gente.
Percebi isso, acho, vendo o meu release (pra que
diabos a gente faz isso?): tudo o que coloquei em meu currículo musical foi “cantei
com fulano, trabalhei com sicrano, participei do CD de beltrano”. Ok, e quanto
ao que eu faço dentro do meu próprio trabalho? Não tem valor, uai. Se eu for
uma artista que basicamente cria, grava as próprias canções e resumidamente trabalha
em cima do próprio trabalho (não participando de outros), não tenho
legitimidade alguma. Quase não existo.
Estou exagerando? Pode ser, mas infelizmente não
estou mentindo (eu aumento, mas não
invento). Lembro que no Sonora 2017, do qual participei, a cantora e
produtora Mô Maiê me apresentou antes que eu entrasse no palco, e percebi:
vixe, que release ruim! Não falei nada relevante sobre mim, citei um bando
de (outros) nomes e só. Quase uma carteirada. E certamente esta percepção se deu porque logo antes a cantora
Amanda Gasparetto havia sido apresentada, também, e achei linda a forma como ela usou o próprio release para descrever suas canções, mencionando o mar como principal inspiração. (Não quero cagar regra criar regras, tampouco: apenas entendi que me identifico mais com essa abordagem sem pretensões de currículo lattes.)
Desde que me mudei para um lugar ligeiramente
afastado das efervescências, comecei a pensar mais sobre autonomia, solidão,
autossuficiência, a influência dos grupos sociais, a
necessidade de se afastar um pouco e as benesses disso. Aproveitando esta
grande oportunidade de ficar mais comigo, pude compreender que, até então, para
mim, o paraíso sempre havia sido os outros. Era o outro quem me aprovava, era o
outro quem me dizia se eu existia ou não. Sempre foi o outro quem me dava permissão para ser isso ou aquilo e ditava a forma como eu deveria tocar meu trabalho.
E ninguém sabe melhor sobre nós do que nós
mesmos. Mesmo que a gente não consiga se definir (em palavras), a gente sabe
muito bem o que bate mal e sabe muito bem quando está se desrespeitando,
mesmo que finja estar tudo ok (para não criar o
temido climão, sabe? Aliás, acho que está na hora da gente fazer um Manifesto Pró-Climão.
Falando por mim, estou deixando passar uma quantidade abissal de absurdos,
preconceitos e desrespeitos apenas para não criar uma atmosfera ruim. E acho que às
vezes é necessário fazê-lo – tão difícil quanto necessário).
Seguindo o mesmo pensamento de “o paraíso são os
outros; nós somos um inferno” (eita, essa ficou forçada... Sartre que me perdoe), também observei o quanto
vemos nosso esforço, as conquistas que se dão graças à nossa proatividade, como
menores. A produção que nós mesmos fazemos não tem o mesmo valor do que aquela
produção que o outro faz e nos convida. É neste momento do convite que a gente
acha que está sendo minimamente reconhecido, enfim. “Me procuraram”, “me chamaram”, “vieram atrás de mim” é bem
mais charmoso do que “fiz um show em minha casa” ou “liguei para lá e consegui uma data”. Mais
uma vez exagerando um pouco: diria que vemos quase como uma queimação de filme
quando nos oferecemos para algo. Ao invés de sentirmos orgulho pelo que conseguimos
através de nosso próprio esforço, ficamos meio aborrecidos por só conseguirmos
as coisas desse jeito.
Receber convites é uma delícia. Não ter que suar,
não precisar correr atrás, simplesmente ir lá e tocar é um verdadeiro presente. Mas só assim tem valor?
Pessoalmente, no que diz respeito a shows, tenho
evitado a fadiga. Por isso, não tenho mendigado pedido datas para locais que
sei que vão mandar aquele “não” gostoso – seja ele um não verbal/textual; seja ele uma ausência de resposta. E por quê? Porque já fiz isso durante
seis anos com minha antiga banda e já tive minha cota (além de ser um flashback
danado – parece que o tempo não passou –, é uma coisa bem desgastante,
e também é uma situação onde o artista se coloca como menor do que um espaço,
um ambiente, uma construção – que parada bizarra! – ou menor do que um
produtor/produtora, enquanto sabemos que isso de pessoas maiores ou menores é
uma mania de hierarquização insana). Atualmente só acho que vale tentar fechar
datas em lugares onde há um diálogo bacana e sei que se rolar um “não” é porque
não há data, mesmo. Aqui no RJ e em São Paulo só conheço quatro lugares assim,
onde há uma abertura verdadeira, sem que seja necessário implorar por uma
oportunidade (dois são espaços da prefeitura com administradores acessíveis – pois,
pasmem, há espaços da prefeitura geridos por pessoas que agem como se aquele
espaço não fosse público –; os outros
dois são casas cujos donos são pessoas verdadeiramente abertas. Nestes casos, não vejo hierarquização). Contei isso tudo neste parágrafo porque
achei importante dizer que minha ânsia atual não tem sido a de sair por aí catando,
alucinadamente, lugares para tocar – mas se fosse, que bom para mim, e que eu
tivesse a decência de escolher lugares bacanas (é essencial manter a autoestima
e não alimentar este círculo vicioso onde os artistas constantemente se
rebaixam).
Está cada dia mais claro para mim que os outros
são ótimos, mas estão longe de ser mais importantes do que eu no que diz
respeito a mim mesma. Eles, mesmo que queiram, não poderão suprir nada de
essencial em mim. Nada que me esteja faltando, que eu saiba que estou me devendo.
Não adianta querer a salvação (de quê?)
oferecida pelo outro, porque os problemas fundamentais somos nós que
resolvemos. Continuo achando que o outro tem o olhar privilegiado sobre nós e
pode ajudar muito com opiniões (quando solicitadas), mas o grau de importância do
que ele fala jamais será maior do que a reflexão que fazemos sobre nós mesmos. E
continuo amando receber convites, pelos quais sou muito grata. Apenas
não estou mais achando interessante me colocar na posição de pedir favores, pedir
oportunidades, esperar ansiosamente por respostas (que nunca virão). Prefiro investir
minha energia com coisas que me trazem satisfação sempre – e a criação é uma
delas.
POW ! Socão na cara de desjejuem, hahaha.
ResponderExcluirBoa Glides, admiro sua força e personalidade.
Bj !