Um dia eu acordei de manhã,
fui no meu armário e vi que só usava preto. Eu pensei: “Nada disso”.
Peguei uma calça e rasguei toda, botei uma meia roxa, enchi a cara de
batom, desgrenhei o cabelo e fui para a rua. Levei porrada. Meu dente entrou
pelo lábio, tenho a marca até hoje. Fui parar no [hospital] Miguel Couto. Mas pior foi tomar cuspida na cara, como
aconteceu em Ipanema.
Essa declaração aí de cima é da Elke Maravilha. Já
faz alguns anos que li esta entrevista, mas nunca esqueci deste trecho, onde
ela descreve como começou a se vestir daquele jeito inconfundível – e
as consequências disso. Quando pensei em escrever sobre caretice, imediatamente
lembrei desta fala.
Eu defino caretice bem por aí: para mim o careta é
este ser humano que dá um soco em uma pessoa pelo simples fato dela ser
diferente, excêntrica – ou seja lá a palavra que venhamos a escolher para
definir a indefinível Elke – e fazer o que bem entende com sua vida (e suas
roupas). Minha imagem de caretice é essa. Nada a ver com uma pessoa certinha,
quadrada ou abstêmia – não é isso o que me vem à cabeça para falar sobre o
assunto. Caretice é algo muito mais danoso, porque tem a ver com a invasão da
vida do outro. Também é rir, pelas costas ou pela frente, das escolhas daquela
ali, do jeito ingênuo deste aqui, da voz aguda daquele lá. A caretice esbarra
na violência verbal (e por vezes na física, como vimos) e invariavelmente cai
no desrespeito.
O careta não aguenta a vastidão do mundo, o tamanho
das coisas. Todo e qualquer um que for “diferente” é piada: o sotaque de quem
vem de outra cidade, a forma de se vestir daquela menina ali, aquele rapaz que
dança desbragadamente (que tal dançar junto, ao invés de rir?). Acho que não
ser careta é algo que poucos conseguem, visto que temos uma sociedade que nos
empurra para a normopatia o tempo todo. Até dá para ser diferente, mas desde
que isso seja aprovado pela moda (certa vez uma amiga comentou, percebendo a
ironia da coisa: “As mulheres até podem adotar o visual grisalho, desde que
este seja pintado – cabelo branco natural, jamais”). Existe o diferente que a
sociedade permite, e o que ela não tolera.
Lembro que tive a – péssima – experiência de ser
mesária em 2016, e uma cena me marcou. Em certo momento, uma moça entrou
com vários adesivos de seu candidato colados em sua roupa – e um especial,
colado em sua testa. Todos os mesários foram respeitosos enquanto ela estava
ali (bem, ao menos isso), mas após sua saída a patrulha ficou falando sobre o
assunto por uns bons minutos, indignada com a atitude. Fiquei pensando: é isso
o que nos está chocando? Um adesivo na testa? (Enquanto isso, no mesmo dia, à
tarde, rolou um tiroteio intenso no Rio Comprido, perto de onde estávamos – taí
algo chocante e absurdo, para quem estava precisando.)
Eu penso que é partindo deste tipo de coisinha (a
implicância com o sotaque do outro, por exemplo... Perdoem a repetição, mas é o
meu exemplo preferido) que começamos a nos encaminhar para coisas mais graves.
Na minha percepção, rir da forma como o outro se expressa é desrespeito (não
é?), e o que é o preconceito se não exatamente isso?
E aí vem a parte mais curiosa: os mais descolados,
os gente boa, os garotões, são os piores. O lelek (ou a patricinha),
provavelmente, tem a mente mais fechada que a fofoqueira do bairro. Ele é
aquele que, pode apostar, cedo ou tarde vai se revelar como o conservador que
sempre foi. Sempre observo essa discrepância entre a capa de libertário e o
pensamento provinciano. Talvez a vizinha faladeira, que casou cedo e trabalha
em casa, seja bem mais acessível e dialogável que muitos desses que já rodaram
o mundo viajando (e não aprenderam quase nada com isso).
Falando especificamente sobre juventude, agora, penso
que esta não faz com que uma pessoa carregue pensamentos novos, pelo simples
fato de ser ou parecer jovem. Muitas vezes ela carrega, até, uma vontade danada
de se enquadrar e ser apenas mais uma, indiferençável, na multidão. E um idoso
pode ser muito mais ousado do que tantos e tantos jovens
adultos.
Acho que essa caretice dos “liberais” – que se veem
como pessoas de mente aberta mesmo quando implicam com a aparência do outro
(“brega”, “cafona”, “caipira” etc.) – consegue ser ainda mais intragável do que
aquela que todo mundo condena, todo mundo vê, todo mundo acha absurda e
antiquada. A caretice dos descolados, do mundo hipster, roqueiro, surfista, do
mundo das artes, dos moderninhos etc. é mais perniciosa ainda porque é
camuflada. Condena quem é diferente, olha torto e ainda acha que pensa fora da caixa.
E a Dona Candinha é quem leva a fama.
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