sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A força da grana


Quais são as regras que inventamos em relação ao dinheiro? Quais são as armadilhas na quais caímos quando este é o assunto (dentro do campo artístico)?

Hoje em dia é bem mais fácil fazermos bons vídeos e clipes (com nosso celular razoável ou com uma câmera emprestada – pois muito mais amigos têm boas filmadoras, por exemplo); é bem mais fácil termos boas fotos para divulgação; é bem mais fácil conseguirmos gravar nossas faixas em casa com uma boa placa de som. E, com isso, o olhar em relação ao artista ficou ainda mais exigente. Todo mundo tem que mandar muito bem. E não estou falando sobre a criação artística, mas sobre a parte estética. Se você não tiver vídeos muito maneiros, de ótima qualidade, não contratar maquiador e figurinista para seu clipe, não conseguir encomendar uma arte maneiríssima para a capa e encarte do seu CD, talvez você seja visto como um artista meia bomba, desleixado até. Daí fica a pergunta: para ser artista tem que ter grana? Ou: quem tem pouco dinheiro deve se abster de apresentar sua arte enquanto ela não estiver impecável visualmente?
Acho importante não cairmos nesse erro. Se atualmente a situação é mais favorável para o artista independente e bons equipamentos estão mais acessíveis, ótimo. Que bom que podemos aproveitar muito mais essas oportunidades. Mas não dá para ter um padrão estético totalmente higienizado e elitizado e achar que quem não puder fazer assim “não está levando o próprio trabalho a sério”. Sejamos francos: o que é mais importante, a criação ou o compartilhamento dessa criação?
Acho bem equivocado usar a grana como medida de todas as coisas. Por isso penso ser importante que a gente faça, sim, a nossa arte da forma mais simples, se essa for a forma possível (diria até que às vezes essa acaba sendo a forma mais interessante). Ruim mesmo é não fazer; e sempre insistirei nisso. Ruim é adiar eternamente a gravação daquele disco porque, né, você quer fazer “com qualidade”. Trata-se de uma qualidade que pede uma grana que você não tem e nem tem perspectiva de ter? Então melhor pensar em outra estratégia, porque pelo visto você quer e precisa dividir sua criação, mesmo que não seja daquela forma ideal (irreal).
(Pode ser que os seus planos grandiosos estejam, pelo contrário, te estimulando, te deixando cada dia mais motivado, e exatamente graças a essa minúcia e detalhismo você tenha cada vez mais certeza de que os irá realizar, em seu próprio tempo. Acho ótimo quando um plano vem para nos ajudar, e não para boicotar e adiar infinitamente a concretização de algo.)
O simples, é claro, talvez seja lido como desleixo. Mas, pense: é bom que seja lido assim. Digo, será que você, artista, precisa ceder à opinião de alguém? Acaba sendo uma boa prova de fogo. Se você gostou de verdade do que fez, mostre logo ao mundo – da melhor forma possível, é claro –, mesmo que preferisse que a faixa estivesse melhor gravada, arranjada etc.
Não sou a favor de fazer de qualquer jeito, e nem de fazer assim só para depois ficar frustrado e se criticando. Pelo contrário, estou exatamente escrevendo aqui um texto antifrustração (hahaha!), e por isso penso que não podemos ceder a um tipo de pressão elitista e excludente, que rola a torto e a direito por aí, e que freia nossos impulsos criativos sempre que possível.
Uma boa forma de furar este esquema é parar de usá-lo como padrão, esquecer de sua existência e sair fazendo do jeito que você pode. Sou a favor do capricho, sim, e concordo com a frase “tudo o que pode ser feito, pode ser bem feito”, mas se estivermos falando de um bem feito que depende de muita grana, aí discordo bastante.
E penso que a criatividade pode ir a nosso favor. Usar a falta de verba como justificativa pode ser convincente para qualquer um à nossa volta, mas não vai nos ajudar em nada. Vale mais tentar driblar pela criatividade. Não estou aqui fazendo discurso de coach, tipo, “se você quiser mesmo, vai lá, dá um jeito e faz” – até concordo com essa fala, de forma geral, mas cada caso é um caso, e se a gente não tiver nem o dinheiro da passagem, ou o da comida, esse tipo de pensamento é só meritocrático, mesmo. Acho bem melhor quando a gente consegue burlar esse sistema para poucos; seja fazendo parcerias e escambos, seja sendo o mais autônomo possível para colocar essas ideias em prática (cada um funciona de um jeito). Mas penso que não vale pegar um empréstimo e ficar tenso meses a fio, por exemplo, graças a um senso comum que alardeia que só através do dinheiro é possível realizar os próprios objetivos.
O que eu tenho observado na minha vida e na vida de muitas pessoas que estão à minha volta é que existe um jeito de fazer a própria arte sem ter grana, ou com bem pouca grana. Dá-se um jeito. E aí, olha que beleza, fura-se esse pensamento, ou melhor, fissura-se o capitalismo, como diria John Holloway. Deixemos os luxos para quem acha isso importante. (E se você acha, vá em frente, mas tente não julgar o colega adepto do do it yourself.)
Lembrei da ocasião em que fui fazer uma sessão de fotos com um ótimo fotógrafo: paguei a ele um dinheiro que eu não podia gastar, mas gastei. Adorei o resultado -- são as minhas fotos mais bacanas --, mas paguei o preço da vaidade. Eu não precisava daquelas fotos. Felizmente hoje entendo que isso não é imprescindível: dá para ser artista sem ter uma foto maneira. Dá para ser artista até sem uma foto sequer (ninguém confisca sua carteirinha se você não tiver nem uma 3x4). Então não tem essa. Se quiser e puder, tire fotos com um profissional que você sabe que vai te entregar um ótimo resultado depois, mas, se não é o caso, tire você mesmo ou peça para algum amigo e veja se sai alguma coisa aproveitável. Você não estará sendo um desleixado, você simplesmente estará dando o seu jeito. Isso não é sacanagem com o seu público, nem com os fotógrafos profissionais. Isso é se adaptar à sua realidade.
Acho engraçada essa balela sobre a imagem do artista, porque se a grana pode ajudar a criar bons cenários para o show, bons figurinos e bons videoclipes, na parte criativa, felizmente, o dinheiro não apita em nada. Se você não está se sentindo inventivo, se você não está conseguindo escrever, se você está se sentindo bloqueado, não é a grana que vai resolver. A parte mais importante do processo é imune às cédulas. Está se sentindo mais relaxado para compor porque não precisa se preocupar com as contas? Ótimo! E faz todo o sentido. Mas vai precisar usar o esforço de sempre para ligar os pontos, estruturar as frases da forma mais adequada ao que você quer dizer etc. Felizmente o dinheiro não compra esse esforço tão gostoso e recompensador.  
E na verdade eu acho, também, esse papo muito antigo. Quando a gente tenta incutir essa ideia em alguém ou em nós mesmos (de que o artista tem que estar sempre irretocável), estamos só repetindo um discurso que a gente ouve desde que nasceu, ou desde que começou a prestar atenção nesse assunto. É um chavão danado, e a gente está em uma época onde o questionamento dos chavões está a todo vapor. Vamos aproveitar.
(E que a grana só esteja aí para ajudar a erguer coisas belas.)

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O sucesso que ninguém tem (ou: que todos têm)


Na televisão, em Brasília: “Só agora Hilda Hilst está ‘chegando’. Nos últimos anos de sua vida é que ela cresceu perante o público.

Em um comentário do YouTube: “Marina [Lima] era bonita, linda voz, mas poderia ter ido bem mais longe, algo foi feito errado”. E a resposta a este comentário também é muito boa de se jogar fora: “Ela perdeu a voz. Talvez se não tivesse acontecido isso ela não teria entrado no ostracismo.”

Em uma entrevista de uma curadora: “Cildo Meireles nunca chegou a ter tanto sucesso internacional, não como outros artistas conseguiram, né?”

Em uma festa, uma pessoa: “O trabalho [de Liniker] é muito legal. Estourou com apenas três músicas lançadas, nem CD tinha, é muito foda.”


Saio de um show onde Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Suzana Salles cantaram apenas canções de Itamar Assumpção e lembro que o Liniker, que tanto sucesso faz, gravou “Fim de festa”, de Itamar, um cara que não fez exatamente sucesso.
É muito, muito mais charmoso fazer sucesso sem nem gravar um CD, super jovem, do que ficar gravando LPs independentes nos anos 80 (como ele conseguia?), gravar CDs nos anos 90 e morrer em 2003 com um grande reconhecimento da crítica e dos colegas músicos, mas sem jamais chegar perto do que jovens artistas conseguem hoje (no quesito público) com seus vídeos no YouTube. Anos depois, regrava-se algo de Itamar, e como vivemos em uma época MUITO MELHOR para qualquer artista independente, quem gravou consegue alcançar um grande público internético e ainda por cima divulga o trabalho do compositor para muitas pessoas que não o conhecem. Isso é incrível.
Mas a parte ruim é quando não vemos que, junto com o esforço de Liniker, há o grande esforço de outras pessoas também – e falo especificamente do esforço de criadores como Itamar Assumpção, que fazem/fizeram o favor de compor pérolas para que depois possamos cantá-las em shows, vídeos etc.
Quando achamos o máximo alguém fazer sucesso “do nada”, “mal começando”, isso pode querer dizer que talvez (e apenas talvez) a gente não respeite muito alguém que passou a vida inteira fazendo algo com toda a dedicação, mas que, no entanto, não ganhou muita visibilidade ao lado do público jovem (que é o que mais consome música, acredito), por exemplo. Talvez a gente ache que este alguém é um pouco pior, mesmo.
E o que pensamos de nós mesmos? Sim, porque se o músico “fracassado” ali não vale muito... Nós devemos valer menos ainda, segundo nossos próprios critérios, certo? Digo isso porque geralmente criticamos quem é bem mais proativo do que nós, quem já gravou várias músicas, já fez diversos shows, escreve livros há anos, já criou uma pá de coisas, já caminhou à beça. Temos a mania de criticar quem está fazendo adoidado ou já fez adoidado.
Estamos mal, e precisamos resolver este desprezo por nós mesmos. Nossos critérios tão altos (eu diria: baixíssimos) nos levam a uma espiral que talvez só nos ajude a cair em depressão. Porque se Cildo Meireles deveria ter alcançado sucesso internacional e não o fez, se Marina Lima “poderia ter ido mais longe”, se Hilda Hilst “só agora está aparecendo para um grande público” (pois a Flip resolveu homenageá-la este ano – e se a Flip falou, tá falado), realmente não sei o que é ser bem sucedido, e não faço a menor ideia se já vi, algum dia, alguma pessoa bem sucedida. Acho que não. E, repito: fico imaginando o que as pessoas que dizem esse tipo de coisa pensam sobre elas mesmas. Pois certamente não fizeram nem um terço do que estes “fracassados” aí fizeram.  
Outra coisa que percebi é que a gente continua vivendo como se ainda estivesse nos anos 90. Como se só conseguíssemos acesso à música e à cultura através dos jornais e da televisão. A gente fica esperando que as informações caiam em nosso colo, e por isso achamos que certos artistas estão no “ostracismo”. E, para completar, nem ficamos sabendo da existência de outros milhares de cantores e compositores que não ficam devendo nada a nenhum dos grandes artistas dos anos 70 e 80 (esses que tanta saudade causam nos comentadores de YouTube: “Hoje em dia só tem lixo” – engraçado, a minha impressão é de que está a cada dia melhor, e não sou nenhuma pesquisadora inveterada de música). Daí o que se faz é ficar usando a internet para ficar choramingando que só toca bosta na rádio (desligar é uma opção, vale lembrar), ao invés de deixar de preguiça e, por exemplo dar uma olhada em algum programa de música nova ali mesmo, no YouTube (como o Cultura Livre – que dá de mil nos programecos de auditório), ou ir a shows de novos artistas e bandas, ou sair para dançar em um lugar onde toque música nova e perguntar que músicas são aquelas ao DJ, por exemplo (sempre fiz isso e conheci muita coisa boa assim). Ninguém tem a obrigação de ficar catando novos sons, nem de correr atrás das mil novidades maravilhosas que surgem por dia na internet (ouvir música é prazer, não obrigação nem prestação de contas), mas não vale dizer que tal artista “sumiu” se você nem deu uma olhada para se informar sobre o fato de que, na verdade, ele já lançou uns quatro CDs desde o último que você ouviu. Assim como não vale falar que não há nada bom sendo feito. Se conferir, vai ver que tem.
Mas fugi um pouco do assunto: o que me impressiona e me motivou a escrever este texto é o fato de que somos extremamente “exigentes” com os outros, e isso deve desmotivar muito mais a nós mesmos do que a eles (embora certamente ajude a piorar a vida de quem está do lado, ouvindo este bando de chorume – penso que esta atitude realmente pode influenciar alguém a desistir do que está fazendo, ou a se achar desprezível).
E acho que é esse comportamento que faz com que a gente, paradoxalmente, supervalorize cada passo que dê. Ao invés de lidarmos com naturalidade com o que criamos, achamos que o mundo inteiro tem que aplaudir – e daí, é claro, ficamos putos com o mundo, como se este fosse injusto e não visse o nosso valor. Quem tem que valorizar o que a gente faz somos nós. Quem tem que entender, de verdade, o que aquilo significa, somos nós; quem tem que se emocionar com o que conseguimos compor somos nós. Ninguém tem que aprovar nada. Mas a gente fica às vezes até inconveniente, convidando os amigos para curtirem a nossa página a cada semana (desculpa, já fiz muito isso, mas um belo dia resolvi mudar), até que o amigo finalmente faça a obrigação dele e curta o raio da página. Ficamos nessa posição de escrever textão no Face quando nosso espetáculo fica vazio, porque achamos inadmissível que aquela exposição censurada cause tanta comoção e o nosso espetáculo burlesco – com certeza lindo – tenha ficado quase vazio. Vejo essa postura como mimada, e creio que só sirva mesmo para tentar incutir a famosa culpa em quem estiver lendo o lamento textual (entrelinhas: “Vocês não me reconhecem como artista, vocês não me dão valor, ninguém se ajuda nessa joça. É por isso que o Brasil está do jeito que está.”). De novo: quem tem que achar maneiro pra cacete o que eu faço sou eu. E que eu valorize, mas não supervalorize algo que todos os meus colegas de profissão também fazem, também suam para conseguir, também cortam um dobrado para realizar. Valorizar é essencial para a manutenção do que fazemos; supervalorizar é o mesmo que exigir que o mundo pare de fazer o que está fazendo para dar o tapinha nas costas que tanto queremos. 
Lembrei de uma fala de um personagem do livro Solidão em família, de Esdras do Nascimento, que acho que se conecta com esse último exemplo que abordei: No dia em que você se preocupar menos com você, no dia em que você descobrir que existem pessoas ao seu redor; no dia em que você descobrir que essas pessoas vivem, sofrem, comem, respiram; que essas pessoas também têm problemas e também têm momentos de felicidade, você viverá melhor”.   

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Clubinhos musicais

1) Certa vez estava comentando com uma amiga sobre rap, e dividi com ela, distraidamente, que não gostava muito deste tipo de som, e que quase não escutava nada desse gênero. Estávamos em um festival no qual haveria o show de uma rapper na abertura, por isso o tópico. Ela, por sua vez, me disse que gostava bastante de rap, por diversas razões (a vivência que teve com pessoas que ouviam muito esse estilo, as letras etc.). Que eu me lembre, assim que falei minhas impressões sobre o rap já achei meu comentário ligeiramente desnecessário, talvez por ser algo que eu mal sabia explicar, e por não ser um comentário muito construtivo. Daí, e talvez por isso, fui ver o show com o coração mais aberto – e adorei o show de Dory de Oliveira, que me prendeu do início ao fim. Essa conversa e esse show ficaram marcados.
2) Outro dia estava discutindo o arranjo de uma música com o parceiro Pedro Costa. Falando sobre sonoridades, mencionei que o baixo daquela gravação estava me lembrando a sonoridade da Rihanna (de quem só conheço duas músicas), e, tentando explicar que não curtia muito aquele estilo, comecei a me embananar: “Eu não curto muito o estilo, apesar de achar legal essa música. Quer dizer, nem curto tanto assim essa música, específica, mas até que o estilo é legal, né? Mas eu não queria que soasse assim...”. Não sabia dizer por que não gostava, e percebi que não era importante explicar. Teria sido mais fácil falar que queria outra sonoridade, simplesmente, ao invés de usar a música popzona como contraponto. Acho que já não está mais dando tanto pé colocar diferentes estilos musicais como antagonistas (talvez). E com certeza eu já sou outra pessoa, não mais aquela que precisa ser “contra” certo gênero musical. Até porque poderia ter sido colocado na minha música um elemento que lembrasse o som da Rihanna e eu gostasse. Apenas não foi o caso.
Aliás, notei que ultimamente poucas músicas têm me irritado ou tirado do sério. Há alguns anos, na verdade, tenho me sentido assim. Creio que isso tenha a ver com a possibilidade que temos, atualmente, de só ouvirmos as músicas que escolhemos. Não precisamos ficar entediados zapeando a TV, ouvindo um monte de coisa indesejada em programas de auditórios, certo? Eu, ao menos, não pratico mais este tipo de masoquismo, e acho que tem me ajudado a valorizar mais a música que não adoro, mas respeito.
Lembro que na adolescência – essa época dá pano para manga, em quase todos os meus textos ela aparece – fui, com uma colega, a um evento onde o DJ da casa só tocaria pagode. Eu fui sabendo que a festa era de pagode, e, principalmente, fui mesmo sabendo que eu não curtia pagode (só gostava de umas poucas do Raça Negra, mas mesmo assim não sairia para dançar ao som delas). A pergunta é: que diabos eu fui fazer lá? E este é só um exemplo entre vários, pois passei por esta situação muitas vezes. Acho que este é o tipo de coisa que mina a nossa energia, e faz com que a gente pegue implicância com certo tipo de música; fique com raivinha de certos universos musicais. E como hoje em dia quase não gasto meu tempo e minha saúde fazendo exatamente aquilo que não gosto, a boa vontade com os diferentes ambientes e músicas aumentou.
Gosto bastante de um texto onde o escritor David Cain comenta uma crença bem comum: aquela onde achamos que precisamos continuar pensando da mesma forma como pensávamos na adolescência ou infância – como se esta fosse nossa “essência”, como se não pudéssemos (e devêssemos) ir melhorando com o tempo. Por que deixar certas convicções velhas, verdadeiros atrasos de vida, nos guiarem até hoje? É preciso repensar o que carregamos, pois pode haver muita coisa sem sentido insistindo em permanecer no nosso sistema. Somos feitos de tantas fases, tantas épocas, e é ótimo quando podemos curtir estas fases sem nenhum tipo de censura infundada, decretada por nós mesmos.
David Cain também fala sobre como a adolescência às vezes nos joga em situações desconfortáveis e por isso pegamos asco de certas “tribos” (ele ficou enfastiado com a galera da música eletrônica/dance, por exemplo – estilo que ele descobriu adorar, tempos depois, em outra situação, bem mais propícia e longe das buátchys que ele se forçou a ir aos 19 anos). Eu, ao ouvir pagode sem estar a fim, fiquei ainda mais arrogante em relação ao que eu curtia: considerava o rock “bem melhor” que todos os outros estilos que os colegas de escola ouviam. Só mais tarde, já mais segura de quem eu era – e sabendo que não deixaria de ser eu mesma apenas por ampliar meu gosto musical –, conheci músicas bacanas de vários outros grupos além do Raça Negra (Art Popular, Fundo de Quintal, Só pra Contrariar), e aos poucos fui achando que legal mesmo era não ser uma roqueira radical. Era bem mais “diferente” (hahaha) ouvir tudo o que me desse na telha, até mesmo porque eu já sabia que era um pouco assim – Jorge Ben, Daniela Mercury, Jon Secada, Peppino di Capri e Donna Summer eram cantores que eu ouvia muito, também, um pouco antes de mergulhar de vez no rock.
Outra coisa que tenho pensado também, ultimamente, é que é fundamental, para que se possa abrir o coração para um novo universo, que ninguém fique enchendo o saco querendo forçar o outro a gostar de algo. Mas pior ainda é quando se tenta demover alguém de gostar de algo (lembro claramente da vez em que tentaram me demover de ouvir Janis Joplin). Isso só vai fazer com a pessoa fique ainda mais interessada naquilo que “não deveria gostar” ou que fique tímida na frente do missionário musical e insegura quanto ao próprio gosto (como a gente consegue transformar em chata uma coisa tão prazerosa quanto a música, né?). Deixemos cada um gostar do que quiser e vai dar tudo certo.
Acho que o que concluí é que cada vez menos está fazendo sentido isso de se privar de algo, isso de não entender que dentro de cada universo pode haver algo que te agrade. E se nada agradar no mundo do funk, por exemplo, ele também não precisa virar o inimigo, o “algo a ser combatido” (tem roqueiro aí – super bem estabelecido musicalmente – ficando ressentido com a popularidade da MC Loma, acredite se quiser). É inegável que o universo do samba, por exemplo, ajuda a construir a identidade de tantas e tantas pessoas, e certamente elas gostam de se afirmar “do samba”; é inegável que a galera do forró também se sente acolhida neste universo e se denomina “forrozeira”; é inegável que o rock me ajudou a encontrar um lugar onde me senti entre meus pares. Mas o que proponho é só que a gente não pense que não há lugar para nós em outros universos, também, porque de fato há (independente da boa ou má vontade das pessoas destas “tribos”), e essa mistura pode ser ótima. Diria que construí muito do que faço hoje em cima do rock, do forró e do samba/MPB, e certamente também em cima de outros gêneros, sem nem perceber ou  racionalizar. Mas sei que quero tudo o que o mundo tiver para dar e que for do meu agrado.   


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

E a culpa que não toque na poesia


Incutir culpa em alguém é algo que dá muito resultado. Funciona divinamente – já reparou? Já sentiu isso? Já fez isso com terceiros?
Irei falar aqui mais especificamente sobre a culpa dentro do âmbito das artes, pois este é o campo no qual atuo e circulo e é onde vejo a culpa rolando solta. Mas é importante já deixar claro que não acho que este joguinho inútil seja vivido apenas pelas pessoas que atuam na esfera artística. Pelo contrário: infelizmente vejo que este jogo está presente em todos os âmbitos de nossa sociedade, de forma incessante, e sem previsão nenhuma de algum dia acabar. (E por que acabar com este jogo, se ele é tão efetivo, se funciona tão bem?)
Recentemente fui a uma palestra sobre arte e política, e houve um momento em que uma pessoa mencionou um trabalho de artistas em uma ocupação. Achei interessante a forma como esta pessoa mencionou que era importante “pensarmos se não era o artista quem mais estava ganhando com aquela ação; se o grande beneficiado não era ele, afinal, muito mais do que os moradores daquela ocupação”. Digo que achei interessante a fala desta pessoa porque ela despertou algo em mim: a percepção de que aquele “pedido de reflexão” não era nada mais, nada menos, do que a expressa culpabilização do artista por este ter tido a intenção de fazer de sua arte um ato político. E outra percepção que tive foi a de que aquela era a centésima vez que eu ouvia aquele tipo de culpabilização, tão bem educada e pretensamente insenta. (Porque se fosse para contar as culpabilizações grosseiras e rancorosas que já ouvi ou li, aí o numero seria bem acima de cem).
Discordo ferrenhamente desta fala. O fato dela não ser original e já um tanto cansativa não é grave, mas deve ser notado também, visto que parece fazer parte de algum manual. Mas para mim o principal é que, pessoalmente, não vejo como, em qualquer situação, poderia haver algum beneficiado maior do que o próprio artista. Não acho possível que exista alguém que se sinta mais realizado e satisfeito do que o próprio artista que colocou uma ideia em prática. E mesmo quando ele fica insatisfeito com o que fez, para mais ninguém aquilo está tão imbuído de significado quanto para o autor. Eu posso amar aquela obra do Cildo Meireles e ela mudar minha vida, até, mas certamente a vida dele foi muito mais modificada, a identidade dele se construiu muito mais do que a minha ao fazer aquilo e a confecção daquela obra tem muito mais importância para ele do que para qualquer outra pessoa no mundo. O artista sempre vai “sair ganhando” (essa expressão é péssima – como se este fosse um jogo de ganhar e perder). Por quê? Porque a arte tem disso: você é potência quando cria, ainda mais do que quando absorve a arte de alguém. O ato artístico traz esta consequência consigo, felizmente. Então não há a menor possibilidade de que outros que não sejam o artista se beneficiem ainda mais do que próprio. E estes “outros” podem ser os moradores de uma ocupação ou os frequentadores de uma exposição. Será talvez pequena a mudança efetiva, visível, que ocorrerá na vida destes ocupantes de um edifício abandonado – mas pode ser que seja significativa e ótima. Eles não deixarão de viver em condições precárias, mas talvez o contato e a troca entre artista e moradores seja importante para ambos – e, pessoalmente, já considero um grande feito que esta troca aconteça (quantos de nós estamos dispostos a isso? A sair do conforto de nossas casas e colocar um projeto em prática? A trocar com outras pessoas, fazer uma residência em um ambiente totalmente diferente daquele ao qual estamos acostumados?).
Lembro das Guerrilla Girls, em uma conversa em São Paulo (quando vieram para uma expo no MASP), respondendo a diversas perguntas do público, e uma destas perguntas foi: “Vocês farão alguma ação nas ruas, ou ficarão restritas às instituições?”. A resposta, calma e tranquila como todas as respostas antes e depois desta, foi: “That’s your job!”, e desenvolveram a resposta explicando o quanto é importante que se espalhem as ideias, pois a ideia das Guerrilla Girls é exatamente esta: disseminar esta arte feminista e aguerrida, criticar a supremacia masculina no meio das artes. Achei interessantíssima a forma como elas não se colocaram em um lugar de culpadas (como “deveriam” se colocar, após esta pergunta – certo?) por estarem expondo a história de seus trabalhos em uma grande instituição. E ao longo de toda a fala delas foi possível ver o quão clara está em suas mentes a forma como pensam a arte política: todos nós temos responsabilidade a partir do momento que nos interessamos e achamos aquilo certo. Cobrar não cabe, visto que se trata de algo que qualquer um pode fazer (não estamos falando de política institucional). A performance, o ato estético-político, é para qualquer um que quiser e tiver coragem ou iniciativa para fazê-lo.
(“Ninguém faz nada” é uma falácia bem confortável. A partir do momento que você sabe, se sente indignado e pensa que é impossível ficar parado, esse assunto te pertence, e não a outro. Não dá para querer empurrar a responsabilidade. Se você deseja, cabe a você resolver este desejo.)
Há um trecho de uma entrevista de Mano Brown no Roda Viva, em 2007, em que o jornalista Renato Lombardi faz uma pergunta que penso ser a síntese deste tipo de jogo infrutífero: “Independente das letras e da música, o que mais o teu grupo faz para poder orientar, para poder abrir a cabeça das pessoas, dessa juventude que está aí com drogas e violência em tudo o quanto é esquina? O que mais vocês fazem, independente das letras e da mensagem que vocês passam?”
Ou seja: a arte não basta, ela por si só não serve. Mano Brown está errado em fazer “apenas” rap. Ele deveria fazer muito, muito mais. Felizmente a psicanalista Maria Rita Kehl, pouco depois, fez questão de comentar a pergunta: “Às vezes dá a impressão de que está todo mundo aqui achando que os Racionais poderiam resolver o problema da criminalidade”. E eu, daqui, penso que achamos que a arte é um negócio bem rasteiro, bem superficial, que necessita sempre de um complemento, algo mais “concreto”. A subjetividade é uma besteira.
Estamos vivendo uma época de muitos questionamentos, muito feminismo, muito mais representatividade negra e LGBTQ, muito mais espaço para debates vitais. E me sinto a cada dia entendendo um pouco mais o mundo em que vivo e as pessoas ao meu redor – penso que esta talvez seja uma sensação de muitos outros habitantes do mundo. E não acho que faça parte deste avanço tão visível (em textos, músicas, filmes, conversas) que estamos vivendo uma imersão em um mar de autocrítica infinda (devido a um grande medo de darmos um passo em falso). Eu, como artista, sinto que o medo de errar e de ser acusada de “pretensiosa”, ou de “sair ganhando em cima de alguém” em algum momento só me leva a ser mais tímida e retraída do que já sou, a ter mais medo ainda de ousar e arriscar. Não me leva, em nenhum momento, a querer melhorar e ter mais senso crítico. Apenas me paralisa. O que me faz melhorar, mesmo, é ler os bons textos da Lola Aronovich, ler ótimos livros como os de Adélia Prado, ir a exposições à lá Queermuseu, saber da existência de performances como La bête, ouvir o Sinta a Liga Crew, ver um filme como Te prometo anarquía. Toda essa arte me ajuda a viver melhor, pois me faz rever meus conceitos, e ainda me inspira como artista.  
Atenção e sensibilidade em relação a quem nos cerca são aspectos vitais para a convivência em sociedade. Mas vejo uma sanha, quase um desejo (para não dizer tesão) de apontar dedos, ferir, fazer linchamento virtual e querer o pior para quem usou a palavra errada na hora errada. Saibamos distinguir: há pessoas mal intencionadas; há pessoas distraídas que entendem sinceramente o próprio erro e merecem seguir a vida sem essa marca. Por que diabos estamos tão preocupados com o banimento eterno de algumas pessoas da sociedade (=Facebook, Twitter etc.)? Não penso que alguém que errou irá melhorar no isolamento total, sem nenhum interlocutor, sem amigos, sem chances de rever o que fez de errado.  
Para finalizar: culpa não é algo que pessoas de fora da arte incutem nos artistas; culpa não é algo que artistas incutem em quem não está fazendo arte; culpa não é algo que jornalistas e críticos de arte incutem em artistas; culpa não é algo que artistas incutem em jornalistas e críticos de arte. Culpa é algo que todos nós incutimos em todos, o tempo todo.