Incutir culpa em alguém é
algo que dá muito resultado. Funciona divinamente – já reparou? Já sentiu isso?
Já fez isso com terceiros?
Irei falar aqui mais
especificamente sobre a culpa dentro do âmbito das artes, pois este é o campo no
qual atuo e circulo e é onde vejo a culpa rolando solta. Mas é importante já deixar
claro que não acho que este joguinho inútil seja vivido apenas pelas pessoas que
atuam na esfera artística. Pelo contrário: infelizmente vejo que este jogo está
presente em todos os âmbitos de nossa sociedade, de forma incessante, e sem
previsão nenhuma de algum dia acabar. (E por que acabar com este jogo, se ele é
tão efetivo, se funciona tão bem?)
Recentemente fui a uma
palestra sobre arte e política, e houve um momento em que uma pessoa mencionou
um trabalho de artistas em uma ocupação. Achei interessante a forma como esta
pessoa mencionou que era importante “pensarmos se não era o artista quem mais
estava ganhando com aquela ação; se o grande beneficiado não era ele, afinal,
muito mais do que os moradores daquela ocupação”. Digo que achei interessante a
fala desta pessoa porque ela despertou algo em mim: a percepção de que aquele “pedido
de reflexão” não era nada mais, nada menos, do que a expressa culpabilização do
artista por este ter tido a intenção de fazer de sua arte um ato político. E
outra percepção que tive foi a de que aquela era a centésima vez que eu ouvia
aquele tipo de culpabilização, tão bem educada e pretensamente insenta. (Porque
se fosse para contar as culpabilizações grosseiras e rancorosas que já ouvi ou li,
aí o numero seria bem acima de cem).
Discordo ferrenhamente
desta fala. O fato dela não ser original e já um tanto cansativa não é grave,
mas deve ser notado também, visto que parece fazer parte de algum manual. Mas
para mim o principal é que, pessoalmente, não vejo como, em qualquer situação, poderia
haver algum beneficiado maior do que o próprio artista. Não acho possível que
exista alguém que se sinta mais realizado e satisfeito do que o próprio artista
que colocou uma ideia em prática. E mesmo quando ele fica insatisfeito com o
que fez, para mais ninguém aquilo está tão imbuído de significado quanto para o
autor. Eu posso amar aquela obra do Cildo Meireles e ela mudar minha vida, até,
mas certamente a vida dele foi muito mais modificada, a identidade dele se
construiu muito mais do que a minha ao fazer aquilo e a confecção daquela obra tem
muito mais importância para ele do que para qualquer outra pessoa no mundo. O
artista sempre vai “sair ganhando” (essa expressão é péssima – como se este fosse um jogo de ganhar e
perder). Por quê? Porque a arte tem disso: você é potência quando cria, ainda
mais do que quando absorve a arte de alguém. O ato artístico traz esta consequência
consigo, felizmente. Então não há a menor possibilidade de que outros que não
sejam o artista se beneficiem ainda mais do que próprio. E estes “outros” podem
ser os moradores de uma ocupação ou os frequentadores de uma exposição. Será talvez
pequena a mudança efetiva, visível, que
ocorrerá na vida destes ocupantes de um edifício abandonado – mas pode ser que seja
significativa e ótima. Eles não deixarão
de viver em condições precárias, mas talvez o contato e a troca entre
artista e moradores seja importante para ambos – e, pessoalmente, já considero
um grande feito que esta troca aconteça (quantos de nós estamos dispostos a
isso? A sair do conforto de nossas casas e colocar um projeto em prática? A
trocar com outras pessoas, fazer uma residência em um ambiente totalmente
diferente daquele ao qual estamos acostumados?).
Lembro das Guerrilla Girls,
em uma conversa em São Paulo (quando vieram para uma expo no MASP), respondendo
a diversas perguntas do público, e uma destas perguntas foi: “Vocês farão
alguma ação nas ruas, ou ficarão restritas
às instituições?”. A resposta, calma e tranquila como todas as respostas antes
e depois desta, foi: “That’s your job!”,
e desenvolveram a resposta explicando o quanto é importante que se espalhem as
ideias, pois a ideia das Guerrilla Girls é exatamente esta: disseminar esta
arte feminista e aguerrida, criticar a supremacia masculina no meio das artes. Achei
interessantíssima a forma como elas não se colocaram em um lugar de culpadas
(como “deveriam” se colocar, após esta pergunta – certo?) por estarem expondo a
história de seus trabalhos em uma grande instituição. E ao longo de toda a fala
delas foi possível ver o quão clara está em suas mentes a forma como pensam a
arte política: todos nós temos responsabilidade a partir do momento que nos
interessamos e achamos aquilo certo. Cobrar não cabe, visto que se trata de
algo que qualquer um pode fazer (não estamos falando de política
institucional). A performance, o ato estético-político, é para qualquer um que
quiser e tiver coragem ou iniciativa para fazê-lo.
(“Ninguém faz nada” é uma
falácia bem confortável. A partir do momento que você sabe, se sente indignado
e pensa que é impossível ficar parado, esse assunto te pertence, e não a outro.
Não dá para querer empurrar a responsabilidade. Se você deseja, cabe a você
resolver este desejo.)
Há um trecho de uma
entrevista de Mano Brown no Roda Viva, em 2007, em que o jornalista Renato
Lombardi faz uma pergunta que penso ser a síntese deste tipo de jogo infrutífero:
“Independente das letras e da música, o que mais o teu grupo faz para poder
orientar, para poder abrir a cabeça das pessoas, dessa juventude que está aí com
drogas e violência em tudo o quanto é esquina? O que mais vocês fazem,
independente das letras e da mensagem que vocês passam?”
Ou seja: a arte não basta, ela
por si só não serve. Mano Brown está errado em fazer “apenas” rap. Ele deveria
fazer muito, muito mais. Felizmente a psicanalista Maria Rita Kehl, pouco
depois, fez questão de comentar a pergunta: “Às vezes dá a impressão de que
está todo mundo aqui achando que os Racionais poderiam resolver o problema da
criminalidade”. E eu, daqui, penso que achamos que a arte é um negócio bem rasteiro,
bem superficial, que necessita sempre de um complemento, algo mais “concreto”.
A subjetividade é uma besteira.
Estamos vivendo uma época de
muitos questionamentos, muito feminismo, muito mais representatividade negra e
LGBTQ, muito mais espaço para debates vitais. E me sinto a cada dia entendendo
um pouco mais o mundo em que vivo e as pessoas ao meu redor – penso que esta
talvez seja uma sensação de muitos outros habitantes do mundo. E não acho que
faça parte deste avanço tão visível (em textos, músicas, filmes, conversas) que
estamos vivendo uma imersão em um mar de autocrítica infinda (devido a um
grande medo de darmos um passo em falso). Eu, como artista, sinto que o medo de
errar e de ser acusada de “pretensiosa”, ou de “sair ganhando em cima de alguém”
em algum momento só me leva a ser mais tímida e retraída do que já sou, a ter
mais medo ainda de ousar e arriscar. Não me leva, em nenhum momento, a querer
melhorar e ter mais senso crítico. Apenas me paralisa. O que me faz melhorar,
mesmo, é ler os bons textos da Lola Aronovich, ler ótimos livros como os de
Adélia Prado, ir a exposições à lá Queermuseu,
saber da existência de performances como La
bête, ouvir o Sinta a Liga Crew, ver um filme como Te prometo anarquía. Toda essa arte me ajuda a viver melhor, pois
me faz rever meus conceitos, e ainda me inspira como artista.
Atenção e sensibilidade em
relação a quem nos cerca são aspectos vitais para a convivência em sociedade.
Mas vejo uma sanha, quase um desejo (para não dizer tesão) de apontar dedos,
ferir, fazer linchamento virtual e querer o pior para quem usou a palavra
errada na hora errada. Saibamos distinguir: há pessoas mal intencionadas; há
pessoas distraídas que entendem sinceramente o próprio erro e merecem seguir a
vida sem essa marca. Por que diabos estamos tão preocupados com o banimento
eterno de algumas pessoas da sociedade (=Facebook, Twitter etc.)? Não penso que
alguém que errou irá melhorar no isolamento total, sem nenhum interlocutor, sem
amigos, sem chances de rever o que fez de errado.
Para finalizar: culpa não é
algo que pessoas de fora da arte incutem nos artistas; culpa não é algo que
artistas incutem em quem não está fazendo arte; culpa não é algo que
jornalistas e críticos de arte incutem em artistas; culpa não é algo que
artistas incutem em jornalistas e críticos de arte. Culpa é algo que todos nós incutimos em todos, o tempo todo.
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