sexta-feira, 3 de agosto de 2018

E a culpa que não toque na poesia


Incutir culpa em alguém é algo que dá muito resultado. Funciona divinamente – já reparou? Já sentiu isso? Já fez isso com terceiros?
Irei falar aqui mais especificamente sobre a culpa dentro do âmbito das artes, pois este é o campo no qual atuo e circulo e é onde vejo a culpa rolando solta. Mas é importante já deixar claro que não acho que este joguinho inútil seja vivido apenas pelas pessoas que atuam na esfera artística. Pelo contrário: infelizmente vejo que este jogo está presente em todos os âmbitos de nossa sociedade, de forma incessante, e sem previsão nenhuma de algum dia acabar. (E por que acabar com este jogo, se ele é tão efetivo, se funciona tão bem?)
Recentemente fui a uma palestra sobre arte e política, e houve um momento em que uma pessoa mencionou um trabalho de artistas em uma ocupação. Achei interessante a forma como esta pessoa mencionou que era importante “pensarmos se não era o artista quem mais estava ganhando com aquela ação; se o grande beneficiado não era ele, afinal, muito mais do que os moradores daquela ocupação”. Digo que achei interessante a fala desta pessoa porque ela despertou algo em mim: a percepção de que aquele “pedido de reflexão” não era nada mais, nada menos, do que a expressa culpabilização do artista por este ter tido a intenção de fazer de sua arte um ato político. E outra percepção que tive foi a de que aquela era a centésima vez que eu ouvia aquele tipo de culpabilização, tão bem educada e pretensamente insenta. (Porque se fosse para contar as culpabilizações grosseiras e rancorosas que já ouvi ou li, aí o numero seria bem acima de cem).
Discordo ferrenhamente desta fala. O fato dela não ser original e já um tanto cansativa não é grave, mas deve ser notado também, visto que parece fazer parte de algum manual. Mas para mim o principal é que, pessoalmente, não vejo como, em qualquer situação, poderia haver algum beneficiado maior do que o próprio artista. Não acho possível que exista alguém que se sinta mais realizado e satisfeito do que o próprio artista que colocou uma ideia em prática. E mesmo quando ele fica insatisfeito com o que fez, para mais ninguém aquilo está tão imbuído de significado quanto para o autor. Eu posso amar aquela obra do Cildo Meireles e ela mudar minha vida, até, mas certamente a vida dele foi muito mais modificada, a identidade dele se construiu muito mais do que a minha ao fazer aquilo e a confecção daquela obra tem muito mais importância para ele do que para qualquer outra pessoa no mundo. O artista sempre vai “sair ganhando” (essa expressão é péssima – como se este fosse um jogo de ganhar e perder). Por quê? Porque a arte tem disso: você é potência quando cria, ainda mais do que quando absorve a arte de alguém. O ato artístico traz esta consequência consigo, felizmente. Então não há a menor possibilidade de que outros que não sejam o artista se beneficiem ainda mais do que próprio. E estes “outros” podem ser os moradores de uma ocupação ou os frequentadores de uma exposição. Será talvez pequena a mudança efetiva, visível, que ocorrerá na vida destes ocupantes de um edifício abandonado – mas pode ser que seja significativa e ótima. Eles não deixarão de viver em condições precárias, mas talvez o contato e a troca entre artista e moradores seja importante para ambos – e, pessoalmente, já considero um grande feito que esta troca aconteça (quantos de nós estamos dispostos a isso? A sair do conforto de nossas casas e colocar um projeto em prática? A trocar com outras pessoas, fazer uma residência em um ambiente totalmente diferente daquele ao qual estamos acostumados?).
Lembro das Guerrilla Girls, em uma conversa em São Paulo (quando vieram para uma expo no MASP), respondendo a diversas perguntas do público, e uma destas perguntas foi: “Vocês farão alguma ação nas ruas, ou ficarão restritas às instituições?”. A resposta, calma e tranquila como todas as respostas antes e depois desta, foi: “That’s your job!”, e desenvolveram a resposta explicando o quanto é importante que se espalhem as ideias, pois a ideia das Guerrilla Girls é exatamente esta: disseminar esta arte feminista e aguerrida, criticar a supremacia masculina no meio das artes. Achei interessantíssima a forma como elas não se colocaram em um lugar de culpadas (como “deveriam” se colocar, após esta pergunta – certo?) por estarem expondo a história de seus trabalhos em uma grande instituição. E ao longo de toda a fala delas foi possível ver o quão clara está em suas mentes a forma como pensam a arte política: todos nós temos responsabilidade a partir do momento que nos interessamos e achamos aquilo certo. Cobrar não cabe, visto que se trata de algo que qualquer um pode fazer (não estamos falando de política institucional). A performance, o ato estético-político, é para qualquer um que quiser e tiver coragem ou iniciativa para fazê-lo.
(“Ninguém faz nada” é uma falácia bem confortável. A partir do momento que você sabe, se sente indignado e pensa que é impossível ficar parado, esse assunto te pertence, e não a outro. Não dá para querer empurrar a responsabilidade. Se você deseja, cabe a você resolver este desejo.)
Há um trecho de uma entrevista de Mano Brown no Roda Viva, em 2007, em que o jornalista Renato Lombardi faz uma pergunta que penso ser a síntese deste tipo de jogo infrutífero: “Independente das letras e da música, o que mais o teu grupo faz para poder orientar, para poder abrir a cabeça das pessoas, dessa juventude que está aí com drogas e violência em tudo o quanto é esquina? O que mais vocês fazem, independente das letras e da mensagem que vocês passam?”
Ou seja: a arte não basta, ela por si só não serve. Mano Brown está errado em fazer “apenas” rap. Ele deveria fazer muito, muito mais. Felizmente a psicanalista Maria Rita Kehl, pouco depois, fez questão de comentar a pergunta: “Às vezes dá a impressão de que está todo mundo aqui achando que os Racionais poderiam resolver o problema da criminalidade”. E eu, daqui, penso que achamos que a arte é um negócio bem rasteiro, bem superficial, que necessita sempre de um complemento, algo mais “concreto”. A subjetividade é uma besteira.
Estamos vivendo uma época de muitos questionamentos, muito feminismo, muito mais representatividade negra e LGBTQ, muito mais espaço para debates vitais. E me sinto a cada dia entendendo um pouco mais o mundo em que vivo e as pessoas ao meu redor – penso que esta talvez seja uma sensação de muitos outros habitantes do mundo. E não acho que faça parte deste avanço tão visível (em textos, músicas, filmes, conversas) que estamos vivendo uma imersão em um mar de autocrítica infinda (devido a um grande medo de darmos um passo em falso). Eu, como artista, sinto que o medo de errar e de ser acusada de “pretensiosa”, ou de “sair ganhando em cima de alguém” em algum momento só me leva a ser mais tímida e retraída do que já sou, a ter mais medo ainda de ousar e arriscar. Não me leva, em nenhum momento, a querer melhorar e ter mais senso crítico. Apenas me paralisa. O que me faz melhorar, mesmo, é ler os bons textos da Lola Aronovich, ler ótimos livros como os de Adélia Prado, ir a exposições à lá Queermuseu, saber da existência de performances como La bête, ouvir o Sinta a Liga Crew, ver um filme como Te prometo anarquía. Toda essa arte me ajuda a viver melhor, pois me faz rever meus conceitos, e ainda me inspira como artista.  
Atenção e sensibilidade em relação a quem nos cerca são aspectos vitais para a convivência em sociedade. Mas vejo uma sanha, quase um desejo (para não dizer tesão) de apontar dedos, ferir, fazer linchamento virtual e querer o pior para quem usou a palavra errada na hora errada. Saibamos distinguir: há pessoas mal intencionadas; há pessoas distraídas que entendem sinceramente o próprio erro e merecem seguir a vida sem essa marca. Por que diabos estamos tão preocupados com o banimento eterno de algumas pessoas da sociedade (=Facebook, Twitter etc.)? Não penso que alguém que errou irá melhorar no isolamento total, sem nenhum interlocutor, sem amigos, sem chances de rever o que fez de errado.  
Para finalizar: culpa não é algo que pessoas de fora da arte incutem nos artistas; culpa não é algo que artistas incutem em quem não está fazendo arte; culpa não é algo que jornalistas e críticos de arte incutem em artistas; culpa não é algo que artistas incutem em jornalistas e críticos de arte. Culpa é algo que todos nós incutimos em todos, o tempo todo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário