quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Ainda sobre a comparação


Em uma aula o professor comenta sobre a saída de Nara Leão do espetáculo Opinião, quando Maria Bethânia a substituiu. Essa rápida menção – que serviu apenas como ponte para algum outro assunto – já foi o suficiente para que um dos alunos da sala comentasse, quase que imediatamente: “Muito melhor, né?” – ou algo por aí.
Em um ensaio, as desnecessárias comparações entre Gil e Caetano: “Esse aqui toca muito mais”, “esse canta muito mais”, “mas esse escreve muito melhor” etc. A comparação entre esses dois, aliás, já presenciei diversas vezes – parece que falar sobre eles por pouco mais de dois minutos obrigatoriamente fará com que surja a questão: quem arrasa mais?
Em um almoço: “É claro que o Chico escreve muito melhor que o Caetano”. Meu primeiro pensamento foi: nunca havia pensado em colocar os dois em um ranking, e nunca foi óbvio para mim que, é claro, um era bem melhor que o outro.
A tal da comparação. É um vício. A gente não consegue falar bem de um sem deixar de usar outro como inferior em relação àquele primeiro. Por quê?
Falando sobre todos esses aí, que citei, especificamente: acho-os complementares. E, pensando bem, será que não somos, todos nós, complementares? Diria que sim, que cada artista “resolve” uma ânsia específica, preenche um vazio específico. E desperta algo diferente em cada um. Não tem como viver se alimentando de um só artista. São necessários muitos, vários, para levarmos a vida. Muitos cineastas, muitos escritores, muitos músicos. Faz algum sentido compará-los?
Mais uma vez me ponho a pensar o que achamos de nós mesmos quando colocamos, por exemplo, Djavan e Milton Nascimento – ou qualquer outros dois artistas, escolhe aí – em comparação. Ao diminuirmos Djavan, o que isso quer dizer? Será que queremos, de qualquer jeito, fazer com que ele pareça um artista meia boca (ou não tão bom quanto Milton, e isso já o torna menos digno de respeito graças à nossa opinião)? E nós, que tipo de artista somos? Tão prolíficos quanto Djavan, será? Ok, agora sou eu quem nos está comparando com Djavan. Olha o vício...
As afinidades estão aí e sempre estiveram. Da mesma forma como nos identificamos mais com aquele amigo, com aquele familiar, com aquela colega de trabalho, nos identificamos mais com aquele artista. Isso quer dizer que aqueles com os quais não me identifico tanto são piores? Se assim for, só posso concluir que minha opinião é a opinião mais válida do planeta. Se ela tem o poder de discernir o que é bom e o que é ruim, o que está em 1º, 2º e 3º lugar no pódio etc., então realmente eu sou o parâmetro de tudo. Pena que o colega ali da esquina também pensa assim, e o ranking dele está completamente diferente do meu (quem ele pensa que é?). E dá-lhe tentativa de conversão; dá-lhe deixar florescer o missionário/colonizador nosso de cada dia. Prepotência que todos nós tivemos ou ainda temos, mesmo que só às vezes...
O psicólogo Antonio Roberto Soares, em um texto bem interessante, afirma: “É imensa a carga de comparação a que somos diariamente submetidos. É uma força tão imensa que poucas vezes nos damos conta dela. Tão imersos estamos nesse processo que, infelizmente, talvez jamais tenhamos refletido sobre esta estrutura que penetrou e continua penetrando todo o nosso jeito de existir na vida”. Acredito piamente que a maioria de nós nunca tenha pensado a fundo sobre o assunto, apesar de vivermos essa realidade desde que nascemos. É algo que parece natural. Eu, com 35 anos, ando pensando nisso a fundo apenas agora. Até aí, quanto estrago já foi feito? Uma vida inteira crendo que existem melhores e piores não será rapidamente substituída por uma vida onde se entende que cada um tem seu próprio valor, que ninguém é melhor que ninguém etc. Haja paciência para entender os próprios tropeços e o próprio tempo de amadurecimento.
Esses dias li A arte de pedir, da cantora Amanda Palmer, e em um dos trechos deste livro sobre generosidade, confiança e o mundo artístico em geral, ela diz: “Vejam os meios de comunicação: uma hora endeusamos os artistas, no minuto seguinte os demonizamos. Os artistas interiorizam isso e perpetuam o ciclo; eles fazem isso uns com os outros e a si mesmos.” Me interessa muito pensar no que nós fazemos uns com os outros. E me interessa, muito, saber o que é que nós reproduzimos a partir da mídia (bem mais do que saber o que é que a mídia fala). E é inevitável, então, avaliar esse vício comparativo.
Como produtos que somos desta sociedade competitiva, fazemos comentários até amigáveis, mas repletos de comparações ou de diminuições. “Seu CD é ótimo; as letras claramente não são escritas por poetas – sou poeta, sei do que falo –, mas as músicas são muito boas”; “Quero um autógrafo! Mas da próxima vez me chame para fazer a arte gráfica, tá? – sou designer, sei do que falo”; “Sua voz é muito bonita, apesar de pequena e com pouca potência”; e mais centenas de frases que encheriam um livro.
Sempre usei a comparação como modo de avaliar os outros e a mim mesma. Não me fez/faz nada bem. Além de criar a famosa inveja, produz também uma eterna postura de vítima, onde o elogio a outrem é um ataque a você (cada palavra é uma flecha). Essa grande ilusão de importância (“todos estão contra mim”), por sua vez, cria também uma postura extremamente desconfiada, sempre com um pé atrás. A roda viva da comparação é tóxica demais e nos envenena, sempre, com o terror de uma possível inferiorização.
Conseguiremos, algum dia, reconhecer nosso próprio valor, e consequentemente dispensaremos o regozijo com a “falta de habilidade” do próximo (ou o que quer que a gente queira acreditar que falte nele)? Conseguiremos, sem falsa modéstia – que talvez seja quase tão nociva quanto a comparação –, ter serenidade em relação a nosso próprio modus operandi? Teremos aquela convicção positiva que nos ajudará a não nos importarmos tanto nem com a vida dos outros, comparando-os, medindo seus valores, nem com as opiniões quase sempre equivocadas que terceiros têm em relação a nós? Estes são atributos que consigo observar em algumas pessoas próximas a mim, e essa forma de tocar a vida me inspira bastante.
Para terminar, uma boa dica que o já citado psicólogo dá, em seu texto: “Existe um tipo de comparação com a qual não estamos acostumados, que normalmente não fazemos e, se a fizermos, nós sairemos do processo da inveja: é a autocomparação, a comparação conosco mesmos. (...) Estamos hoje piores ou melhores do que éramos ontem? Em termos sociais, psicológicos, financeiros, espirituais, estamos melhores ou piores do que estávamos há algum tempo atrás?”. O que sinto é que quando pratico a autocomparação acabo tendo um olhar bem mais generoso comigo. Me compreendo, vejo meus avanços e me sinto mais animada, estimulada a continuar fazendo o que faço. Não prego a eliminação do senso crítico (uma das coisas mais importantes que podemos desenvolver), mas a tranquilidade para fazermos nossos trabalhos e atividades sem nos preocuparmos se terceiros estão fazendo aquilo com muito mais competência do que nós. 

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Sobre quando eu não sabia do que falar



Eu não sabia sobre o que escrever. Do que falaria? Eu não tinha muita ideia do que dizer, porque não sabia direito quem era. 
Houve uma crise existencial fundamental, onde eu senti a tal “solidão de um corpo independente”, a percepção desta condição intrínseca e inevitável, e essa solidão melancólica me fez desesperar em alguns momentos. Eu precisei questionar quem eu era, me sentir estranha na minha pele e ir me encontrando para que, aos poucos, a coisa fosse ficando, além de intensa, também divertida. Porque mesmo quando eu falasse sobre algo dolorido, naquilo havia um gosto bom. Era eu me entendendo e construindo minha identidade. Como naquela frase de Neruda: “Algum dia em qualquer parte, em qualquer lugar indefectivelmente te encontrarás a ti mesmo, e essa, só essa, pode ser a mais feliz ou a mais amarga de tuas horas”. 
E  fui vendo o quanto era bom transformar a dor em algo que me ajudava. Fui pegando o constrangimento, a inadequação, a fragilidade, os rancores e falando sobre eles; libertando-me um pouco, aos poucos, desses fardos. “Falar sobre os piores sentimentos com os melhores sentimentos”, como diz Amir Haddad, foi algo poderoso, mas ao mesmo tempo bem gradual, cujo efeito fui notando aos poucos. Também fui pegando aquilo que me encantava, o que me movia, e fui fazendo daquilo uma música, ou ao menos um rascunho.
Mas, voltando à forma como eu pensava; acho que, apesar de eu amar cantar e criar músicas, havia um grande desejo intrínseco a essa história de ter uma banda (mesmo que meus atos não explicitassem essa ambição): ter muito reconhecimento, ser famosa com aquele grupo. Intimamente essa consequência era algo importante para mim. O processo teria que ter, ao final, esta “recompensa”. Um happy ending era obrigatório para aquilo que eu estava fazendo. Se alguém falasse que tudo aquilo ali seria “apenas” uma experiência, eu levaria este comentário praticamente como um insulto. Como assim? Todo o meu esforço para nada?
E penso que quando ficamos focados nesse tipo de possível consequência alguns detalhes passam sem receber nossa devida atenção. O que eu estava dizendo em minhas letras? Não sei. Aquilo que eu fazia tinha muito a ver com o estilo de vida com o qual eu me identificava (o universo do rock), mas bem menos com a expressão de quem eu era, com minhas próprias palavras. Eu me expressava através das melodias, é claro; e também através do jeito que eu escolhia cantar; até o jeito que eu me vestia era uma expressão. Tudo aquilo era muito eu, sem dúvidas. Mas eu não tinha muito do que falar, porque não me investigava, não me propunha a isso. Diria que eu apenas saía vivendo, e o que a vida oferecesse, eu topava. Não fazia muitas escolhas – ao menos fiz algumas, como cantar e fazer parte de uma banda –, e por isso achava que a vida era uma coisa irrefreável, onde nós tínhamos que nos adaptar ao que fosse acontecendo, apenas; praticamente sem nenhum poder de escolha. Você era o que era, e ponto; seu destino já havia sido selado. Faça o melhor com isso. Pode soar darwiniano e prático, mas acho esta não filosofia de vida apenas fatalista, frustrante e péssima. Pensar desta forma – quando, na realidade, você tem muitas escolhas e pode construir sua existência da forma mais adequada (possível) ao seu modo de ver o mundo – é tirar o mínimo da vida. Mas é isso o que acontece quando você nem sabe direito quem é. Eu não sabia qual era a minha forma de ver o mundo. E por isso não tinha muito a dizer.
Só quando fui me divertindo com o meu universo e gostando de utilizar as coisas que tinham a ver comigo é que fui tendo sobre o que escrever. Só quando, nessa tal fase densa, fui praticando mais a escrita, fui tocando vez ou outra o violão e experimentando nele, só quando fui reunindo as frases soltas em diversos lugares e tentando uni-las a melodias guardadas ou novas, só quando fui perdendo a vergonha de mim mesma e fui fazendo uns troços ruinzinhos e melhorando-os aos poucos (é assim que acontece, né?), só quando fui deixando reverberar em textos as conversas que eu trocava com as pessoas de meu convívio é que fui achando que, talvez, eu tivesse do que falar. Fui começando a saber quais eram as minhas questões. E começaram a surgir outras, como sempre surgirão, mas eu já estava bem mais atenta aos sinais e atenta ao que eu sentia.
E hoje mais detalhes me chamam a atenção. Cada vez mais as coisas que vejo me trazem a necessidade de escrever e me expressar. E cada vez mais as coisas que vivo se transformam em algo, porque cada vez mais eu preciso transformá-las.
E aos poucos vou entendendo do que é que eu quero falar.