quinta-feira, 25 de maio de 2017

Outras farsas

Anteontem fui ver um vídeo cujo link me chegou por e-mail. Era o trailer do filme The inertia variations, um documentário sobre Matt Johnson, vocalista do The The. Fiquei impressionada com aquela amostra do filme: não sabia, não fazia a menor ideia, de que Matt, grande compositor, vocalista e guitarrista, estava vivendo um bloqueio criativo há 15 anos. Pensava que, mesmo não lançando nada há tempos, ele devia estar muito bem, fazendo suas belas canções em casa, sem pressão nenhuma – exatamente por já ter vendido milhões de discos e não precisar se preocupar em sobreviver de música. Mas o trailer inicia com a voz de Matt, em um monólogo: “‘Faça algo’, eu digo a mim mesmo. ‘O quê?’, ‘A mesma coisa que venho fazendo todos os dias, há anos, alcançando diferentes graus de insucesso...’” Foi bem significativo ver um músico que admiro tanto, aparentemente tão poderoso, falando sobre o quanto anda se sentindo frágil – há 15 anos...
Nesse mesmo dia, o ator e cantor Dudu Carneiro compartilhou no Facebook algo muito interessante, que uma amiga também atriz havia escrito:

Pensando no sobre fazer teatro, me deu uma tristeza ao perceber que ninguém se diverte mais. Tá todo mundo querendo acertar de primeira, ninguém se permite rir de um erro de marca ou texto, ninguém sai junto, não tem mais aquele ir embora junto, a pé, falando sobre os medos, a estética, a sensação de não conseguir fazer o que o diretor quer. Tá todo mundo endurecido, fechado, fingindo não ter dúvida, fingindo não ter conflitos. (...)

Os comentários desta postagem foram muito bacanas e expressaram bem esta solidão nada positiva que vez ou outra sentimos em um mundo cheio de cobranças de perfeição... Um dos que mais me tocou foi este: “Sinto falta de poder demonstrar sem pudores que estou com medo de não dar conta”, disse uma das colegas de Dudu. Me fez recordar a frase “porque quando sou fraco, então é que sou forte”, tão boa para refletirmos, sempre.
A pergunta é: quando vamos admitir que estamos com medo? Quando deixará de ser vergonha assumirmos que falhamos? Quando vamos rir de nossos próprios erros, de nossa própria vergonha, como o fazem os palhaços?
Lembro-me de um show de Cátia de França, no Sesc Niterói, em 2011. Além da musicalidade impressionante de Cátia (uma força xamânica em cena), amei ver que a emoção dela é tanta, e que há tanta entrega em seu canto, que seus erros não são nem disfarçados: “desculpe”, ela diz, no meio de uma canção, e segue. Essas “falhas” acabam sendo um diferencial no show dela. É gostoso ver aquele espetáculo artisticamente impecável, e tão assumidamente imperfeito.
Voltando a Matt Johnson, não sei por que razão o músico anda bloqueado – talvez vendo o filme todo eu consiga saber. Mas desconfio que tenha a ver com essa pressão interna, mesmo; essa obrigação de ter sempre um toque de Midas (uma vez sucesso, sucesso sempre; ou então ganha-se a pecha de fracasso retumbante), cantar perfeitamente, compor aquele mesmo hit que você já fez, sabe?, só que de outra forma, sabe-se lá como...
Para completar, também no mesmo dia – anteontem – vi à noite o filme Laerte-se, documentário sobre a incrível cartunista que acabou se tornando uma grande voz do universo trans. O filme me chamou a atenção por algumas falas de Laerte onde fica evidente um sentimento bastante comum dentre os artistas: os outros sempre estão muito bem, sempre têm mais legitimidade, sempre são mais bem ajambrados, sempre estão melhores do que nós. Alguns exemplos: “[Tenho] medo do que as pessoas podem achar, de me faltar argumento, me faltar motivação”; “Eu sou inadequada, e por isso a minha casa é inadequada...”; “Eu começo a achar desimportante o que eu tenho a falar”; “Eu não conseguia ver aquilo ali na ocupação como uma obra sólida. (...) Não era como a exposição do Ziraldo, ou do Jaguar, ou do Millôr”; “Eu começo a achar que eu estou ali por engano, que queriam na verdade chamar outra pessoa e acabaram me chamando.”
É impressionante o quanto, a cada dia mais, vejo pessoas admiráveis, tanto amigos quanto personalidades como Laerte, sentindo-se como outsiders (“não sou da galera”/ “me sinto deslocado em tal ambiente”, já ouvi dois de meus amigos mais populares e enturmados dizendo), julgando-se piores, sentindo-se como farsas que, a qualquer momento, podem ser descobertas e denunciadas. Me identifico vez ou outra com estes sentimentos, mas a cada vez que vejo alguém interessante admitindo se sentir assim entendo que só posso estar caindo neste mesmo jogo...

Acho que, no final, fica escancarada a ineficácia das falácias atuais: de que adianta fingir que se é feliz, sempre, o tempo todo? Estas mentiras que tanto queremos cultivar não estão se sustentando. Felizmente! Sinto até que as máscaras estão caindo, aos poucos. Creio que outros Matt Johnsons falarão abertamente sobre bloqueios, outras Laertes falarão sobre suas dúvidas, outras Cátias errarão no palco e tudo bem, outros artistas de teatro poderão dizer que se sentem tristes. E pode ser que isso nos leve a sermos cada vez mais sinceros, quem sabe? Talvez, sem tanta pressão para sermos felizes, de fato a gente se sinta feliz. 

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