Finalizando o livro Vivendo pela palavra, de Alice Walker, chego ao texto “Por que a
galinha balinesa atravessou a estrada?”. Este ensaio me chamou bastante a
atenção – e fez com que eu pensasse sobre a forma como levamos adiante (ou não)
nossas ideias até que virem texto/música/arte em geral.
Alice, após voltar de uma viagem a Bali, não
conseguia esquecer uma cena que presenciara: uma galinha tentando atravessar a
rua com seus filhotes. Uma galinha que, enquanto não conseguia chegar ao outro
lado, procurava alimentos no chão para si e seus pintinhos. “Eu realmente a vi”, conta. “Tinha a pose orgulhosa e
firme das galinhas, que nos dá a impressão de que as aves, especialmente
galinhas, têm personalidade e vontade”.
Aquela havia sido sua experiência mais marcante em Bali, “ter visto realmente e
me identificado com uma galinha”.
Todos os textos deste livro me impressionaram.
Eu poderia falar de cada um deles, e seria um prazer, mas o que me chamou a
atenção neste, especificamente, foi o fato da escritora ter finalmente
resolvido falar sobre algo que pode ser considerado pueril, estranho, despropositado.
Como é isso de se identificar com uma galinha? Como é isso de não conseguir
esquecer a visão de um animal? Como é isso de ouvir a voz deste bicho – como
Alice descreve, na primeira linha do texto –, em tom de cobrança, perguntando:
“Por que você está sempre adiando a tarefa de escrever a meu respeito?”.
Isso me fez pensar no quanto o artista pode ter
vergonha de falar sobre o que realmente quer falar. Afinal, sempre haverá
críticos para todo e qualquer tópico que escolhermos: natureza, política, amor,
literatura, psicologia... Qualquer assunto existente poderá ser ridicularizado
e visto com desdém, mesmo que nós, os autores, nunca saibamos disso. Qualquer forma
de abordar qualquer tema que seja causará desagrados, e isso é garantido.
Lendo todo o livro de Alice pensei no quanto muitos
de nós nos importamos com a recepção daquilo que fazemos – e, principalmente,
com a opinião daqueles que mais admiramos (acho que uma boa prova de fogo na
vida, em geral, é não se deixar levar pelo caminho que as pessoas mais importantes para nós nos impõem/sugerem). Porque Alice também escreve sobre os
olhos de um cavalo (no qual via um enorme tédio, por viver sozinho no pasto);
sobre seus próprios cabelos (suas “antenas”); sobre o sonho onde era namorada
de Langston Hughes; sobre outro sonho onde uma anciã lhe dava o título deste
mesmo livro, Living by the word; nos
mostra uma carta que escreveu para Deus – e tudo isso é íntimo e pessoal demais,
talvez feminino demais (ha!). Neste
mesmo livro, no ensaio “No recesso da alma”, Alice fala sobre K. T.
H. Cheatwood, que a criticou duramente, por exemplo, por escrever uma poesia
sobre o estupro sofrido por sua tetravó, e por ver a escritora como uma “amante das
afetações burguesas”, entre tantas outras acusações mais graves (como ser uma
escritora negra “no fundo cheia de ódio pelos negros”, escreveu o crítico, também negro).
Alice Walker não tem vergonha de ser
extremamente espiritual. Não pode abafar o que precisa escrever, pois isso seria
abafar quem ela é. Esta é uma das mais fortes características de sua escrita –
falar de Deus, de meditação, de sonhos, sua conexão com os animais: falar do
transcendental. Que tipo de escritora seria Walker se abafasse o que tem de
mais específico? O que seria de sua escrita se ela se importasse com a opinião
de quem acha tudo isso ridículo?
Daí quis me perguntar: o que acontece conosco
quando deixamos de falar algo que precisamos falar? Qual o efeito de uma
palavra que nós censuramos em uma canção ou texto, por exemplo, por medo do
julgamento? Qual o prejuízo interno quando censuramos a ideia inteira de um
texto, antes mesmo de começarmos a escrevê-lo?
O que acontece quando podamos quem somos graças
à preocupação excessiva com o impacto daquilo que temos a dizer?
Ontem me mostraram esta fala do artista Artur
Barrio, e acho que ela tem muito a ver com tudo o que tenho pensado e sentido
ultimamente: “Essa preocupação com o público, de atingir determinada corda
vibratória para que isso deflagre um tipo de comunicação ou participação na
obra, eu me afastei completamente disso e não tenho nenhum interesse em saber
qual será a reação do público, ou se eles vão aceitar ou não. Eu faço o
trabalho como se fosse estritamente para mim, não no sentido de usufruí-lo ou
contemplá-lo, mas no ato de fazê-lo, criá-lo. (...) Eu não vou me dar ao luxo
de pensar no outro. É um egoísmo, mas é um egoísmo criativo.”
Esta fala de Barrio me fez pensar, também, em
outro aspecto relativo aos “outros”, além do da crítica: o do reconhecimento.
Nossa arte, em si, nos satisfaz? Ou, enquanto ela for independente, pouco
reconhecida, sempre estará em falta? Enquanto não “chegarmos lá” (onde fica
esse lugar, “lá”?), a arte sempre nos trará frustração neste sentido? Se
soubéssemos, hoje, que o que fazemos jamais alcançará as massas, e que as
coisas continuarão como estão hoje (com pouco alcance), o que aconteceria?
Largaríamos o que fazemos? Ou continuaríamos fazendo nossa arte, ainda com
ânimo, não nos importando com as consequências desta (e sim com a criação, em
si)?