sábado, 30 de junho de 2018

Danado de bom


Chegamos na Feira de São Cristóvão relativamente cedo, em uma sexta-feira. Havia começado a chover um pouco antes, no ônibus, ainda a caminho, mas isso não importava. Chegando lá, sujamos bastante nossos pés no chão de terra da pista de dança em frente a um dos quatro palquinhos de forró pé-de-serra. Minha sandália mais tarde arrebentou, e aquela foi a primeira vez que dancei forró, mesmo. Nem sabia a diferença entre baião e xote, e nem sabia como se dançava, mas meu primeiro par foi um senhor paraibano – acredito que fosse, porque dançava “um pra lá e um pra cá” (um-um), e não dois pra lá e dois pra cá. Sorridente e com um perfume muito bom (sutil), sua voz não ouvi – não trocamos uma só palavra, nem antes nem depois, muito menos durante a longa dança, que se estendeu por várias músicas. Nesse mesmo dia subi no palquinho de Raminho e seu Trio Forró Pesado e cantei “Mata o papai”. E quais outras? Não lembro. Talvez só essa, pois à época provavelmente este era o único forró que eu sabia cantar do início ao fim (graças ao meu irmão mais velho, que vez ou outra colocava um CD do Trio Forrozão, ao vivo, para soar pela casa). 
Comi baião de dois com aipim e bebi suco de cupuaçu. Saí de lá pensando que a Feira era um pedaço do céu, pois a equação era: comida barata e deliciosa + música perfeita + ambiente gostoso, acolhedor, de todos (entrada a R$ 1,00, à época). Eu e o amigo Wilher – que hoje toca no Trio Borogodó e já tocava zabumba na Feira – saímos de lá quase de manhã. (Dançamos até funk em uma das barracas, mas o tópico funk fica para uma próxima.)
Por causa desse dia, houve finais de semana em que fui sexta, sábado e domingo a São Cristóvão. E depois de tanto dançar, curtir e me envolver, comecei a cantar forró. Algumas vezes em Seropédica, com o Forró de Cordas, que me deu essa alegria de pode fazer alguns shows muito gostosos com eles, e também em outras situações e lugares: fazendo meus próprios shows de forró, na Lapa; cantando com o Severino e Sua Gente em diversas festas juninas, também, gostosas demais – pela companhia, pela amizade, pela música. Cantar forró, percebi, me pareceu algo fácil, muito mais fácil do que quaisquer outras canções que eu já tivesse cantado. Por quê? Não sei! Mas cantei e canto forró com mais facilidade e descontração do que o faço em outros estilos. Pode ser uma impressão só minha, mas o que importa é que sinto isso.
A esta época me fascinei por diversas músicas e artistas, ouvi atentamente Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Trio Forrozão, Marinês, Trio Nordestino, Os 3 do Nordeste, Jorge de Altinho, Cassiano e Trio Beija-Flor e tantos outros. E confesso que pirei um pouco com “Feira de mangaio” cantada por Clara Nunes ao lado de Sivuca. Ficava ouvindo no repeat, andando de bicicleta, não sei quantas vezes. Vício bom.
(Engraçado que quando comecei a escrever esse texto um forró eletrônico estava tocando em algum lugar na vizinhança. O tal do forró de teclado – depois que passei a frequentar a Feira, este passou a ser um som que sempre me lembra de ótimas coisas, momentos de muito riso e dança. Deve ser porque na Feira ouvi, por exemplo, uma inesquecível versão para “Umbrella”, de Rihanna – “Se não valorizar”, em português).
A imersão nesse universo fez com que eu tivesse a oportunidade de, em 2012, ir a Campina Grande com Jurandy da Feira, que me convidou para participar do show dele na grande festa. Não sei se foi mais emocionante cantar no evento ao lado de Jura ou conhecer a Paraíba: andar pelas ruas embandeiradas, ver o pôr do sol ao som de outro Jurandy (o do Sax)...
E quanto às festas juninas, essas festas deliciosas? Seja cantando ou apenas curtindo uma festinha de igreja, de pracinha, na casa de alguém, observo que todos parecem se sentir um pouco mais infantis e desarmados. Há um clima de espontaneidade muito bom no ar.

Eu agradeço ao povo brasileiro, norte e centro, sul inteiro, onde reinou o baião. Foi e é delicioso incorporar mais este universo ao meu. Que bom que expandi ainda mais minha visão e audição para além do Sudeste, para além do que eu crescera ouvindo. Ouvindo baião e xote veio de lambuja, também, todo o universo nordestino, com seu sotaque e sabor inacreditáveis.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Seção pretensão


Você já pediu permissão para ser artista?
Fico feliz por quem não esteja nem entendendo bem essa pergunta, pelo fato de nunca ter se sentido assim.
Mas lembro de inúmeras vezes em que senti, claramente, um grande medo de fazer minha arte sem a autorização de ninguém.
Estava conversando com meu companheiro esses dias, e me vi percebendo exatamente o quanto ele nunca havia pedido permissão para fazer nada do que fez. Coloca sua arte no mundo, sempre, e até hoje não achou que não teria o direito de fazê-lo. Nunca perguntou a alguém se, sendo artista visual, poderia fazer um documentário (“área do cinema”), apenas fez. Utilizou diversas mídias, à vontade. Escreveu livros, fez músicas. Não pela vontade de se classificar como “multimídia”, mas pela vontade de criar sem freios ou limites. Acho que ele não acredita em “proprietários das artes”: ela é de todos, chega quem quer.
Mas muitos de nós ainda nos colocamos em caixas e pensamos que precisamos da tal benção de alguém, ou que precisamos de cursos e graduações para realizarmos algo. Os cursos e as graduações podem ser experiências fascinantes (muitas vezes são épocas marcantes, ricas e cheias de encontros), mas se a gente estiver usando esta futura graduação ou curso apenas para adiar aquilo que a gente já poderia estar fazendo, é só autoboicote, mesmo. “Queria muito escrever, mas aquele curso de escrita literária está meio caro”; “queria muito dançar, mas não tenho grana pra me matricular na Deborah Colker”; “poxa, o curso de interpretação que a fulana vai dar é em São Paulo, que pena, não vai ser dessa vez que finalmente vou começar a interpretar”. Não é incomum inventarmos desculpas esfarrapadas para continuarmos chafurdando no medo. A especialização está aí para ajudar, não para servir de freio de mão. (Sou, aliás, totalmente a favor dessa experiência deliciosa que é estudar o que se ama.)  
Na infância, felizmente, a maioria das pessoas se sente livre, (quase todo mundo ainda se sente artista). Quando crescemos é que a competitividade, a cobrança e a comparação falam mais alto (não que estas três maravilhas não existam na infância – quem dera! –, mas vejo que a coisa pega com força, mesmo, mais tarde); então fui crescendo, virei adolescente e, depois, já “gente grande”, fui achando que era preciso antes de qualquer coisa, estudar muito, talvez muitos anos, para fazer coisas que eu já poderia fazer. Só depois desses estudos eu seria “algo” ou “alguém”.
(Também podemos usar como freio de mão um “guru”, alguém que a gente adore e que nos diga exatamente o que devemos fazer. Só ele sabe! “Ele aprovou”, então está tudo sob controle: você está autorizado a seguir em frente -- ufa!)
Penso que muitos de nós estamos procurando a carteirinha de artista em algum lugar, mas essa carteirinha não nos é dada nunca. Ela não vem com o diploma, nem com o certificado de curso de interpretação, nem com as fotos daquele concurso de pintura que fizemos. Nem o currículo recheado de informações e atuações na área artística mostra que você é um “artista certificado”. Porque sempre haverá alguém com padrões muito maiores que os nossos, prontinho para falar que o que a gente fez não é suficiente, não dá nem pro começo. Então a gente busca de qualquer jeito essa legitimidade, mas ela não vem nunca, e o resultado é: ficamos desesperados, querendo respeito e dando carteirada (talvez a da Ordem dos Músicos sirva, quem sabe?), como se fossem os outros que devessem nos respeitar, e não nós mesmos.
Precisamos escrever nas redes sociais absolutamente tudo o que já alcançamos, para que ninguém duvide de nossa capacidade. Mas a má notícia é que vão continuar duvidando, sempre. E a boa notícia é que se a gente parar de duvidar, o problema está resolvido e a gente não vai mais se impedir de fazer nada.
Daí comecei também a pensar, nesses últimos dias, sobre o que ando querendo fazer. E em como isso pode soar pretensioso, para alguns (e ao mesmo tempo pífio, para outros). Será que meus projetos – que não são nada de mais, na verdade – estão “fora de minha alçada”? Será que estou achando que sou uma grande coisa, e querendo fazer mais do que deveria? Bem, segundo minha visão, não; nem um pouco. Pensando sobre isso, entendi que realmente não há nada que a gente não “deva” fazer artisticamente – não estou falando de questões éticas; refiro-me à questão da linguagem/área.
Não sinto (mais) a necessidade de me denominar isso ou aquilo, mas entendo que preciso ser pretensiosa (no melhor dos sentidos) caso eu realmente queira fazer três coisas ao mesmo tempo (todas ligadas ao meu trabalho artístico como cantora), por exemplo. Porque estas coisas me dão força, porque estas coisas se alimentam, porque não há outra forma de fazer acontecer que não seja: ir lá e fazer. Sem esperar que alguém “permita” – ou, pior, que alguém, algum dia, do nada, bata à minha porta e me convide para fazer exatamente essas coisas que quero fazer. Taí algo que não vai rolar nunca.
Desejo a todos nós uma grande cara de pau e muita coragem para que sejamos pretensiosos, sem crises, sempre que necessário. Que a gente consiga ser aquele que “pretende demasiadamente” (segundo o dicionário), aquele metido que vai lá e faz, sem a permissão de ninguém.

* O título desse texto é uma referência à “Seção Pretensão”, da revista MAD, na qual os leitores enviavam seus desenhos e charges. Me vi pensando que o nome da seção não podia ser melhor para mostrar o quanto a tal da pretensão pode ser muito positiva.

sábado, 9 de junho de 2018

Desclassificada

Quanto mais eu vejo nossa necessidade de nos classificarmos, mais vejo que não sou nada. Profissionalmente, digo.
Acho que a única coisa que não posso negar que sou é cantora. Mesmo assim, há controvérsias.
Quanto mais vejo que somos DJs, designers, empreendedores, ilustradores, cervejeiros, atores, jornalistas, dançarinos e estudantes de pós-graduação, tenho certeza de que não sou nada do que já declarei ser.
Todas as vezes em que quis me definir, a verdade é que menti.
Talvez eu só seja, mesmo, cantora. E para mim está ótimo assim.
Mas, como disse, há controvérsias.
Já disseram que eu não era exatamente uma cantora, assim, propriamente. Entende? Na boa, é claro. E não sei, na verdade, se há alguma coisa que eu de fato seja que, em algum momento, não tenha sido negada por outrem.
(Por outro lado, pude saber que eu era várias coisas: vieram me dizer. Eu nem sabia, mas ainda bem que me avisaram.)
Talvez nem artista eu seja, porque um artista vive do que faz, dirão. Drummond, Guinga, Paulo Bruscky e Bukowski viveram/vivem também de outras coisas, mas todo mundo sabe que esses são artistas, de fato – aliás, creio que alguns apostariam que estes viveram/vivem única e exclusivamente de suas artes, pois é o que parece. E muitos de meus amigos artistas, também, se sustentam com outras coisas, além da arte. Mas eu não sei se posso me classificar assim, visto que não sou Bukowski, nem Drummond, nem Paulo Bruscky, nem Guinga, nem meus amigos.
Agora falando sério: na mesma medida em que acho lamentável o interesse de terceiros em nos classificar (principalmente em nos desclassificar, na verdade), penso que quero cada vez mais não ser o que já tanto disse que sou. Não sou atriz nem professora de canto. Não sou estudante de pós-graduação coisa nenhuma. Não sou nada além de alguém que canta. (Acabei de descobrir que melhor do que ser uma cantora é ser alguém que canta.)
E por que diabos falar nisso, então? Era mais fácil deixar isso para lá e simplesmente não me classificar como nada, parar de mentir e vida que segue. Mas acontece que escrever é bom para organizar os pensamentos, daí a vontade de vir aqui um pouquinho e falar sobre essa besteira.
Como mencionei, a vontade de classificar vinda dos outros existe. Mas a vontade de autoclassificação é muito maior. Afinal, o mundo pede isso. Quem é você? Se você for pouco, não serve. Só isso? Cadê a polivalência, a versatilidade? E, engraçado: é preciso polivalência e especialização, ao mesmo tempo. Conheça muitas coisas, e muito bem todas elas. Bem, na verdade o mundo (=sistema) tem o direito de pedir isso. Bobos somos nós, que obedecemos. Era só deixar o “mundo” falando sozinho, com suas exigências impossíveis (estagiário com experiência etc.). 
Por que a gente cai nessa de que tem que ter diversas vírgulas na hora da apresentação – cantor, produtor, VJ, influencer, redator, multiartista? Sério, já me peguei algumas (várias) vezes pensando que eu era pouco, muito pouco, graças a esse parâmetro aí. Felizmente cheguei à conclusão de que eu só era uma coisa, mesmo, se tanto, e isso me deu um alívio danado.
Porque, na verdade... Penso que somos uma grande quantidade de coisas. Mas não sei se elas servem para o currículo. Acho que não. E não sei se elas precisam ser ditas. Acho que trata-se de uma tentativa de conquistar respeito (algo que não deveria ser conquistado, e sim distribuído livremente entre todos, sem distinção). Mas, como este é um material escasso, vem essa necessidade (minha e de tantos) de provar algo a alguém. Fica sendo uma pequena briga: “Se você por acaso está pensando que não sou porra nenhuma, agora aguenta: sou isso, isso, isso e isso. E isso também. Durma com esse barulho”.
E por que a gente não seria assim? Competitividade é a palavra de ordem. Por que não nos sentiríamos inseguros? Não temos motivos para carregar um sentimento de confiança. A qualquer momento pode vir alguém querendo reduzir nossas convicções a pó. Com qual intuito, vai saber. Ou melhor, sabemos: o mesmo intuito que temos quando vamos até o outro com o propósito de reduzir a confiança dele a pó.
Não estou pregando a falsa modéstia, nem achando que é preciso esconder nenhum fato. Temos mesmo que reconhecer nosso próprio esforço e as vontades que conseguimos levar adiante, temos mesmo que sentir satisfação por termos alcançado tanto. 
Mas não acho (não mais) que estar satisfeito implique avisar a terceiros sobre isso. Ser ou fazer independe de alguém saber disso. Sendo noticiada ou não, a coisa está acontecendo.