terça-feira, 26 de junho de 2018

Seção pretensão


Você já pediu permissão para ser artista?
Fico feliz por quem não esteja nem entendendo bem essa pergunta, pelo fato de nunca ter se sentido assim.
Mas lembro de inúmeras vezes em que senti, claramente, um grande medo de fazer minha arte sem a autorização de ninguém.
Estava conversando com meu companheiro esses dias, e me vi percebendo exatamente o quanto ele nunca havia pedido permissão para fazer nada do que fez. Coloca sua arte no mundo, sempre, e até hoje não achou que não teria o direito de fazê-lo. Nunca perguntou a alguém se, sendo artista visual, poderia fazer um documentário (“área do cinema”), apenas fez. Utilizou diversas mídias, à vontade. Escreveu livros, fez músicas. Não pela vontade de se classificar como “multimídia”, mas pela vontade de criar sem freios ou limites. Acho que ele não acredita em “proprietários das artes”: ela é de todos, chega quem quer.
Mas muitos de nós ainda nos colocamos em caixas e pensamos que precisamos da tal benção de alguém, ou que precisamos de cursos e graduações para realizarmos algo. Os cursos e as graduações podem ser experiências fascinantes (muitas vezes são épocas marcantes, ricas e cheias de encontros), mas se a gente estiver usando esta futura graduação ou curso apenas para adiar aquilo que a gente já poderia estar fazendo, é só autoboicote, mesmo. “Queria muito escrever, mas aquele curso de escrita literária está meio caro”; “queria muito dançar, mas não tenho grana pra me matricular na Deborah Colker”; “poxa, o curso de interpretação que a fulana vai dar é em São Paulo, que pena, não vai ser dessa vez que finalmente vou começar a interpretar”. Não é incomum inventarmos desculpas esfarrapadas para continuarmos chafurdando no medo. A especialização está aí para ajudar, não para servir de freio de mão. (Sou, aliás, totalmente a favor dessa experiência deliciosa que é estudar o que se ama.)  
Na infância, felizmente, a maioria das pessoas se sente livre, (quase todo mundo ainda se sente artista). Quando crescemos é que a competitividade, a cobrança e a comparação falam mais alto (não que estas três maravilhas não existam na infância – quem dera! –, mas vejo que a coisa pega com força, mesmo, mais tarde); então fui crescendo, virei adolescente e, depois, já “gente grande”, fui achando que era preciso antes de qualquer coisa, estudar muito, talvez muitos anos, para fazer coisas que eu já poderia fazer. Só depois desses estudos eu seria “algo” ou “alguém”.
(Também podemos usar como freio de mão um “guru”, alguém que a gente adore e que nos diga exatamente o que devemos fazer. Só ele sabe! “Ele aprovou”, então está tudo sob controle: você está autorizado a seguir em frente -- ufa!)
Penso que muitos de nós estamos procurando a carteirinha de artista em algum lugar, mas essa carteirinha não nos é dada nunca. Ela não vem com o diploma, nem com o certificado de curso de interpretação, nem com as fotos daquele concurso de pintura que fizemos. Nem o currículo recheado de informações e atuações na área artística mostra que você é um “artista certificado”. Porque sempre haverá alguém com padrões muito maiores que os nossos, prontinho para falar que o que a gente fez não é suficiente, não dá nem pro começo. Então a gente busca de qualquer jeito essa legitimidade, mas ela não vem nunca, e o resultado é: ficamos desesperados, querendo respeito e dando carteirada (talvez a da Ordem dos Músicos sirva, quem sabe?), como se fossem os outros que devessem nos respeitar, e não nós mesmos.
Precisamos escrever nas redes sociais absolutamente tudo o que já alcançamos, para que ninguém duvide de nossa capacidade. Mas a má notícia é que vão continuar duvidando, sempre. E a boa notícia é que se a gente parar de duvidar, o problema está resolvido e a gente não vai mais se impedir de fazer nada.
Daí comecei também a pensar, nesses últimos dias, sobre o que ando querendo fazer. E em como isso pode soar pretensioso, para alguns (e ao mesmo tempo pífio, para outros). Será que meus projetos – que não são nada de mais, na verdade – estão “fora de minha alçada”? Será que estou achando que sou uma grande coisa, e querendo fazer mais do que deveria? Bem, segundo minha visão, não; nem um pouco. Pensando sobre isso, entendi que realmente não há nada que a gente não “deva” fazer artisticamente – não estou falando de questões éticas; refiro-me à questão da linguagem/área.
Não sinto (mais) a necessidade de me denominar isso ou aquilo, mas entendo que preciso ser pretensiosa (no melhor dos sentidos) caso eu realmente queira fazer três coisas ao mesmo tempo (todas ligadas ao meu trabalho artístico como cantora), por exemplo. Porque estas coisas me dão força, porque estas coisas se alimentam, porque não há outra forma de fazer acontecer que não seja: ir lá e fazer. Sem esperar que alguém “permita” – ou, pior, que alguém, algum dia, do nada, bata à minha porta e me convide para fazer exatamente essas coisas que quero fazer. Taí algo que não vai rolar nunca.
Desejo a todos nós uma grande cara de pau e muita coragem para que sejamos pretensiosos, sem crises, sempre que necessário. Que a gente consiga ser aquele que “pretende demasiadamente” (segundo o dicionário), aquele metido que vai lá e faz, sem a permissão de ninguém.

* O título desse texto é uma referência à “Seção Pretensão”, da revista MAD, na qual os leitores enviavam seus desenhos e charges. Me vi pensando que o nome da seção não podia ser melhor para mostrar o quanto a tal da pretensão pode ser muito positiva.

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