sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Considerações finais


Eu queria escrever vários textos antes de fechar este blog em um único pacote-livro.
Queria escrever sobre isso da gente muitas vezes querer ser a azeitona na empada dos outros, sobre o desejo de fugir da empreitada mais perigosa e ousada de todas, que é fazer a própria massa da empada, o próprio recheio. Sentimos tanta necessidade de sermos parte de algum grupo que preferimos boicotar nossos potentes projetos pessoais. Acabamos preferindo ser a “azeitona” em algum projeto dos outros... O receio da quietude e da revolução que esta quietude pode proporcionar acaba engolindo a necessidade de criar: o importante é estar com outras pessoas, pois “a solidão é fera, a solidão devora”. Mas, hoje vejo, só tem graça estar junto quando não é por medo de estar sozinho. 
Queria escrever sobre disputas, e sobre como, desde a Copa de 1994 eu percebi, com muita força, o quanto não gosto de competições. É que eu vi a Copa do início ao fim, mas ficava angustiada cada vez que os técnicos dos times perdedores eram filmados. Eu nunca apreciei competições, nunca tive espírito competitivo, mas esqueci disso quando participei de alguns poucos festivais de música. Embora esta fase tenha sido muito legal, pelas viagens, pelas canções que cantei e pelas pessoas que conheci nestas situações, eu ainda não havia parado para pensar, seriamente, no fato de que competição é a base de uma sociedade na qual não me encaixo. A sociedade com a qual me identifico  e que existe aqui, em diversos núcleos, em diversos locais , é aquela das feiras grátis, das mostras de música (onde “ninguém ganha”; todos ganham), e que tem mais a ver com a visão de mundo de Sixto Rodriguez (que “faltou” à cerimônia do Oscar, por exemplo). Quando descobri este tipo de universo, respirei aliviada. Como em uma crônica de Mauro Rasi (“viu, bicha? Podia!”), a vida pareceu me dizer que eu era livre para escolher o caminho que eu bem entendesse, e não havia regras. Eu teria de ir fazendo minhas escolhas meditando, pensando, me entendendo e sendo bem sincera comigo. Eu queria escrever um texto para lançar a pergunta: por que é que nós nos colocamos em uma situação onde alguém julgará se nós mandamos bem, médio ou mal (em testes/audições/festivais)? Demorei para entender que isso não me agradava e nem combinava comigo, em absoluto (por que não nos submetemos apenas ao crivo mais exigente de todos, crivo esse até cruel, às vezes, que é o nosso? Por que não apenas nos perguntamos: isso está bom, mesmo? Eu realmente gostei do que fiz? Acho que essa é a prova mais dura de todas). E queria também escrever que entendi que, para outros artistas, os festivais têm o efeito contrário: as competições são um momento positivo, do qual saem cada vez mais potentes, mais motivados, e muitos deles conseguem se manter financeiramente graças a esta estrutura.
Estou cheia de rascunhos de textos, de fragmentos, de frases soltas que virariam textos, como sempre viram. Mas há uns cinco dias  desde domingo, exatamente  uma melancolia tem sido mais persistente do que o esperado. E fico até pensando se cabe ter questões existenciais como essas que coloquei acima. Penso: é claro que cabe. Mas há certo pudor em falar sobre subjetividades nesse conturbado momento político – espremidos que estamos entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais –, visto que a objetividade é tão importante agora.
Porém, existe algo mais precioso a resguardarmos, agora, que nossos sentimentos? Há algo mais importante do que nossa saúde mental? Eu sinto que preciso manter o ânimo, porque o desânimo é um eficiente caminho para uma tristeza que pode levar à depressão, à descrença... Nada pior do que perder a esperança.
Tenho pensado no bem que a música me fez e faz. No bem que os filmes que tenho visto me fazem. Andei lembrando de André Mendes cantando “Anos dourados”, ao violão; de Léo de Freitas ouvindo comigo “Paradise” do Coldplay, no carro, a caminho de um casamento onde iríamos tocar essa e outras; lembro dos shows que fiz com o grupo Cirandinha, cantando e também ouvindo André Mendes (de novo) interpretando “Leãozinho”, ao violão. É um prazer imediato pensar nestes momentos.
Lembro do ensaio de ontem, com Pedro Costa, e toda a sua alegria serena, de sempre. Foi muito bom cantar. Pois o dia estava lindo, cinza, do jeito que adoro, mas aquele cinza parecia estar em perfeito acordo com meus sentimentos melancólicos. E foi bom voltar de ônibus, o peito ligeiramente menos apertado, lendo um romance que se ambienta em 1964, com uma insistente chuva batendo nos vidros. Foi bom descer do ônibus, e principalmente subir a ladeira que é minha rua. Aí, senti paz. E uma paz ainda maior senti ao chegar em casa e encontrar a pessoa com quem divido minha vida. E, ao conversarmos, matei um pouco as angústias, pois é isso o que sempre sinto quando nós dois conversamos.
Estou lembrando dos livros que li e que estão intimamente ligados ao que estou sentindo, porque estão em perfeito diálogo com o momento que vivemos agora, esse momento de um medo do que pode vir. Livros de Frei Betto, Alex Polari, Heloneida Studart, que tratam dessa atmosfera onde a liberdade está por um triz, ou onde a mesma já está perdida.
Pensar sobre o que o Brasil significa para mim é lembrar do quanto o país nunca me atraiu, até os 16 anos. E lembrar que, a partir de 1999, morar no Brasil foi se tornando uma delícia, cheia de dores, é claro, mas uma aventura muito boa. Fui gostando de cada detalhe, cada malícia, cada brincadeira que a língua faz (gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões), cada pedaço de sol, cada esquina. Voltar de um período de apenas três meses em um país estrangeiro foi o suficiente. Agora era hora de valorizar o local onde eu era cidadã, e deixar para lá, bem longe, qualquer tipo de devaneio sobre “morar na Europa”. Agora era hora de curtir o que havia de mais valioso no Brasil, e não era pouco. E também, anos depois (muitos!), foi hora de começar a pensar, a sério, sem ressentimentos e sem frases feitas, no que o Brasil tinha de mais nocivo. E esse é o amor na sua forma mais interessante, penso: aquele que entende, vê os defeitos, continua amando. Porque vê e vive coisas lindas graças a este grande, este continental sentimento.
Tenho dificuldades em imaginar uma vida fora do Brasil, hoje, ao mesmo tempo em que não hesitaria em poupar minha vida através de uma distância geográfica daqui, se necessário fosse. Mas a verdade é que o Brasil me acolhe de um jeito que será difícil outro lugar acolher. Se aos 12, 13 anos, eu amava tudo o que envolvesse o rock e a língua inglesa, hoje prefiro uma multiplicidade de coisas, e em especial a multiplicidade que existe no Brasil: o clima, a música, a comida, o já mencionado idioma, as relações humanas, o humor no dia a dia, os cheiros, a natureza, as etnias, os imigrantes, o concreto das cidades, São Paulo, Minas, Paraná, Paraíba, Bahia, Goiás e tantos outros que conheci e que preciso ainda conhecer.
É hora de nos alimentarmos direito. É hora de nos cercarmos de bons momentos, de arte que nos toca, de pessoas que vejam o mundo de forma ligeiramente semelhante à nossa. Precisamos alimentar o coração das melhores coisas.
Tive a oportunidade de conhecer Auschwitz, em 2016, e foi uma experiência das mais valiosas. O grande tamanho daquele local me fez ficar bastante tempo ali, conhecendo melhor o horror que víamos retratado em filmes e livros. Eu havia chegado ao local bem nutrida, com plena energia física e emocional, e creio que por isso consegui passar por tudo sem grandes traumas ou gatilhos, mesmo sendo difícil ver o retrato de crianças chorando (posando, provavelmente, para pessoas que só “estavam cumprindo ordens”, sabe?) e fotos muito, muito mais terríveis do que estas. Mas eu e meu companheiro, apesar de eternamente impactados, estávamos de pé, sangue circulando, pressão boa, saúde perfeita. Saímos de lá e falamos sobre aquilo sem melindres, digerimos ao máximo aqueles dados tão difíceis. E posso dizer que esta visita nos deixou ainda mais fortes, pois é isso o que o conhecimento faz conosco.
E insisto que se alimentar bem é fundamental, pois já estamos tendo muitas barras para aguentar, barras ainda piores do que ver fotos, do que revisitar um passado de terror: ainda mais doído do que relembrar um horror é viver este horror em uma versão 2018/2019. 
Temos que estar bem para lutar, HOJE, contra pessoas que certamente concordam com o que Hitler fez, mesmo que não tenham coragem de admitir isso publicamente, por medo de perder votos. Acreditam em outro holocausto, à brasileira, cujo alvo já sabemos (negros e LGBTIs; pessoas pobres, em geral).
Consegui passar pelo tenso período pré-eleições vendo diariamente entrevistas de Ciro Gomes e Fernando Haddad (este último eu acompanho em entrevistas desde 2014). Podia ter visto também as de Guilherme Boulos, mas a dúvida sobre meu voto me fez focar nos dois primeiros. Foi uma boa forma de manter o ânimo, vê-los explanando suas visões sobre educação, saúde, cidades, mobilidade. Até o dia 7 de outubro eu consegui segurar bem o moral, vendo como existem políticos muito bem preparados e, principalmente, motivados por ótimas razões, norteados por uma vocação pela coletividade. Depois é que o cenário ficou ainda mais sério. Ver as entrevistas de políticos que admiro ainda é uma necessidade, mas já não me alivia tanto. Não dá para fingir que tudo não se agravou desde o último domingo.
Eu estava com vontade de falar sobre tantas coisas, antes de fechar mais este blog!  Queria escrever um texto sobre quando fui com minha antiga banda a uma reunião na Sony, ali em Botafogo, em 2005. Foi desconfortável. Haviam nos chamado para conversar após uma crítica positiva de nosso CD em um jornalão. Fomos recebidos pelo Bruno Batista (diretor artístico? Acho que sim), que nos falou sobre várias coisas, sobre como o universo do rap tinha letras ótimas etc., sobre como a banda Luxúria (que na época se chamava Boneca Inflável) era muito boa. Mas durante toda a reunião nós, da banda, sentimos algo do tipo “o que estamos fazendo aqui”? Não entendi até hoje.
Também até hoje não entendi o e-mail que recebi de alguém da Universal (Dani Motta?) falando que o Paul Ralphes, diretor artístico da gravadora à época, queria conversar comigo... Ou era ela, Dani, quem queria conversar comigo? Foi algo assim. Mas o nome dele surgiu no e-mail, que eu respondi prontamente. Isso foi em 2012, e nunca mais ouvi falar deles.
Nunca entendi também o fato de alguém da produção do The Voice ter me ligado em 2012 sobre uma audição (“eu nem me inscrevi!” – “mas o Daniel Silveira te indicou”. Não sei quem é Daniel Silveira). Fui fazer o teste, que foi até interessante porque cantei uma música que gosto muito; mas dias depois alguém ligou querendo saber de mim, se eu tinha alguma história difícil de família, se havia algum causo interessante para contar etc. Deu para sentir o clima xarope na hora.
(Estes três últimos casos aí foram bem emblemáticos em relação à minha total inaptidão para qualquer coisa do tipo gravadora, teste, audição, mercado musical etc.)
Mas não vai dar para mencionar aqui tudo o que eu queria falar. Estou olhando todos os bilhetes que escrevi, com anotações “escrever texto”. Não vai dar. Eu queria escrever 50 textos para publicar, mas serão apenas 42, ao final. Sinto que é hora de fechar. Já estou escrevendo outras coisas, estruturadas de outra forma, e bastante envolvida com estas.
E a melancolia que veio com o primeiro turno das eleições me fez buscar alento nos momentos que mencionei: Coldplay, “Leãozinho”, “Anos dourados”, a serenidade alegre do Pedro Costa, chegar em casa, conversar com quem amo. E ir, hoje, a uma festinha de Dia das Crianças, em Santa Bárbara, Niterói, aqui do lado de casa, também ajudou muito. Ver a rua fechada para que filhos e pais se divertissem com guloseimas, Guara Crac e presentes. Havia mágico, muitos cachorros de rua, escorrega inflável. Foi um passeio delicioso, e voltei mais animada, e diria até que, hoje, sexta-feira, estou sem melancolia. Diria que ela se foi.
Mas ela voltará, porque a razão dela ter vindo ainda está aí. E exatamente porque as coisas estão mudando tanto, penso que é hora de tornar estes textos, já, um livro independente, para que o ciclo se feche. Não há dúvidas: as coisas estão mudando muito, o Brasil está mudando, e talvez tudo fique muito diferente. Um novo ciclo de conversas, textos, músicas, talvez se inicie. Ou não! Mas a impressão é esta, e a vontade é de encerrar, por ora.
Fico satisfeita de ter podido, mesmo que rapidamente, mencionar algumas das coisas que eu queria ter desenvolvido por aqui. Foi bom misturar sentimentos e contar causos neste texto longo; foi bom desabafar sobre o momento tenso, mas também celebrar os momentos gostosos, como uma festa de Dia das Crianças, um ensaio, um livro lido no ônibus.
Acho que acabei conseguindo falar sobre o que eu queria, na verdade. Que bom.
Espero que nós consigamos seguir sem renunciar à nossa subjetividade, aos nossos prazeres, a todas as coisas que constroem nossa identidade. Que possamos aplicar nossos próprios remédios tarja branca, sem restrições, sem receitas, sem receio. Talvez isso nos deixe fortes o suficiente para enfrentar toda a bronca que pode ainda vir.
E já que estamos falando em preservar a saúde, fechemos com a doutora Nise da Silveira: “Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda”.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Ainda sobre a comparação


Em uma aula o professor comenta sobre a saída de Nara Leão do espetáculo Opinião, quando Maria Bethânia a substituiu. Essa rápida menção – que serviu apenas como ponte para algum outro assunto – já foi o suficiente para que um dos alunos da sala comentasse, quase que imediatamente: “Muito melhor, né?” – ou algo por aí.
Em um ensaio, as desnecessárias comparações entre Gil e Caetano: “Esse aqui toca muito mais”, “esse canta muito mais”, “mas esse escreve muito melhor” etc. A comparação entre esses dois, aliás, já presenciei diversas vezes – parece que falar sobre eles por pouco mais de dois minutos obrigatoriamente fará com que surja a questão: quem arrasa mais?
Em um almoço: “É claro que o Chico escreve muito melhor que o Caetano”. Meu primeiro pensamento foi: nunca havia pensado em colocar os dois em um ranking, e nunca foi óbvio para mim que, é claro, um era bem melhor que o outro.
A tal da comparação. É um vício. A gente não consegue falar bem de um sem deixar de usar outro como inferior em relação àquele primeiro. Por quê?
Falando sobre todos esses aí, que citei, especificamente: acho-os complementares. E, pensando bem, será que não somos, todos nós, complementares? Diria que sim, que cada artista “resolve” uma ânsia específica, preenche um vazio específico. E desperta algo diferente em cada um. Não tem como viver se alimentando de um só artista. São necessários muitos, vários, para levarmos a vida. Muitos cineastas, muitos escritores, muitos músicos. Faz algum sentido compará-los?
Mais uma vez me ponho a pensar o que achamos de nós mesmos quando colocamos, por exemplo, Djavan e Milton Nascimento – ou qualquer outros dois artistas, escolhe aí – em comparação. Ao diminuirmos Djavan, o que isso quer dizer? Será que queremos, de qualquer jeito, fazer com que ele pareça um artista meia boca (ou não tão bom quanto Milton, e isso já o torna menos digno de respeito graças à nossa opinião)? E nós, que tipo de artista somos? Tão prolíficos quanto Djavan, será? Ok, agora sou eu quem nos está comparando com Djavan. Olha o vício...
As afinidades estão aí e sempre estiveram. Da mesma forma como nos identificamos mais com aquele amigo, com aquele familiar, com aquela colega de trabalho, nos identificamos mais com aquele artista. Isso quer dizer que aqueles com os quais não me identifico tanto são piores? Se assim for, só posso concluir que minha opinião é a opinião mais válida do planeta. Se ela tem o poder de discernir o que é bom e o que é ruim, o que está em 1º, 2º e 3º lugar no pódio etc., então realmente eu sou o parâmetro de tudo. Pena que o colega ali da esquina também pensa assim, e o ranking dele está completamente diferente do meu (quem ele pensa que é?). E dá-lhe tentativa de conversão; dá-lhe deixar florescer o missionário/colonizador nosso de cada dia. Prepotência que todos nós tivemos ou ainda temos, mesmo que só às vezes...
O psicólogo Antonio Roberto Soares, em um texto bem interessante, afirma: “É imensa a carga de comparação a que somos diariamente submetidos. É uma força tão imensa que poucas vezes nos damos conta dela. Tão imersos estamos nesse processo que, infelizmente, talvez jamais tenhamos refletido sobre esta estrutura que penetrou e continua penetrando todo o nosso jeito de existir na vida”. Acredito piamente que a maioria de nós nunca tenha pensado a fundo sobre o assunto, apesar de vivermos essa realidade desde que nascemos. É algo que parece natural. Eu, com 35 anos, ando pensando nisso a fundo apenas agora. Até aí, quanto estrago já foi feito? Uma vida inteira crendo que existem melhores e piores não será rapidamente substituída por uma vida onde se entende que cada um tem seu próprio valor, que ninguém é melhor que ninguém etc. Haja paciência para entender os próprios tropeços e o próprio tempo de amadurecimento.
Esses dias li A arte de pedir, da cantora Amanda Palmer, e em um dos trechos deste livro sobre generosidade, confiança e o mundo artístico em geral, ela diz: “Vejam os meios de comunicação: uma hora endeusamos os artistas, no minuto seguinte os demonizamos. Os artistas interiorizam isso e perpetuam o ciclo; eles fazem isso uns com os outros e a si mesmos.” Me interessa muito pensar no que nós fazemos uns com os outros. E me interessa, muito, saber o que é que nós reproduzimos a partir da mídia (bem mais do que saber o que é que a mídia fala). E é inevitável, então, avaliar esse vício comparativo.
Como produtos que somos desta sociedade competitiva, fazemos comentários até amigáveis, mas repletos de comparações ou de diminuições. “Seu CD é ótimo; as letras claramente não são escritas por poetas – sou poeta, sei do que falo –, mas as músicas são muito boas”; “Quero um autógrafo! Mas da próxima vez me chame para fazer a arte gráfica, tá? – sou designer, sei do que falo”; “Sua voz é muito bonita, apesar de pequena e com pouca potência”; e mais centenas de frases que encheriam um livro.
Sempre usei a comparação como modo de avaliar os outros e a mim mesma. Não me fez/faz nada bem. Além de criar a famosa inveja, produz também uma eterna postura de vítima, onde o elogio a outrem é um ataque a você (cada palavra é uma flecha). Essa grande ilusão de importância (“todos estão contra mim”), por sua vez, cria também uma postura extremamente desconfiada, sempre com um pé atrás. A roda viva da comparação é tóxica demais e nos envenena, sempre, com o terror de uma possível inferiorização.
Conseguiremos, algum dia, reconhecer nosso próprio valor, e consequentemente dispensaremos o regozijo com a “falta de habilidade” do próximo (ou o que quer que a gente queira acreditar que falte nele)? Conseguiremos, sem falsa modéstia – que talvez seja quase tão nociva quanto a comparação –, ter serenidade em relação a nosso próprio modus operandi? Teremos aquela convicção positiva que nos ajudará a não nos importarmos tanto nem com a vida dos outros, comparando-os, medindo seus valores, nem com as opiniões quase sempre equivocadas que terceiros têm em relação a nós? Estes são atributos que consigo observar em algumas pessoas próximas a mim, e essa forma de tocar a vida me inspira bastante.
Para terminar, uma boa dica que o já citado psicólogo dá, em seu texto: “Existe um tipo de comparação com a qual não estamos acostumados, que normalmente não fazemos e, se a fizermos, nós sairemos do processo da inveja: é a autocomparação, a comparação conosco mesmos. (...) Estamos hoje piores ou melhores do que éramos ontem? Em termos sociais, psicológicos, financeiros, espirituais, estamos melhores ou piores do que estávamos há algum tempo atrás?”. O que sinto é que quando pratico a autocomparação acabo tendo um olhar bem mais generoso comigo. Me compreendo, vejo meus avanços e me sinto mais animada, estimulada a continuar fazendo o que faço. Não prego a eliminação do senso crítico (uma das coisas mais importantes que podemos desenvolver), mas a tranquilidade para fazermos nossos trabalhos e atividades sem nos preocuparmos se terceiros estão fazendo aquilo com muito mais competência do que nós. 

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Sobre quando eu não sabia do que falar



Eu não sabia sobre o que escrever. Do que falaria? Eu não tinha muita ideia do que dizer, porque não sabia direito quem era. 
Houve uma crise existencial fundamental, onde eu senti a tal “solidão de um corpo independente”, a percepção desta condição intrínseca e inevitável, e essa solidão melancólica me fez desesperar em alguns momentos. Eu precisei questionar quem eu era, me sentir estranha na minha pele e ir me encontrando para que, aos poucos, a coisa fosse ficando, além de intensa, também divertida. Porque mesmo quando eu falasse sobre algo dolorido, naquilo havia um gosto bom. Era eu me entendendo e construindo minha identidade. Como naquela frase de Neruda: “Algum dia em qualquer parte, em qualquer lugar indefectivelmente te encontrarás a ti mesmo, e essa, só essa, pode ser a mais feliz ou a mais amarga de tuas horas”. 
E  fui vendo o quanto era bom transformar a dor em algo que me ajudava. Fui pegando o constrangimento, a inadequação, a fragilidade, os rancores e falando sobre eles; libertando-me um pouco, aos poucos, desses fardos. “Falar sobre os piores sentimentos com os melhores sentimentos”, como diz Amir Haddad, foi algo poderoso, mas ao mesmo tempo bem gradual, cujo efeito fui notando aos poucos. Também fui pegando aquilo que me encantava, o que me movia, e fui fazendo daquilo uma música, ou ao menos um rascunho.
Mas, voltando à forma como eu pensava; acho que, apesar de eu amar cantar e criar músicas, havia um grande desejo intrínseco a essa história de ter uma banda (mesmo que meus atos não explicitassem essa ambição): ter muito reconhecimento, ser famosa com aquele grupo. Intimamente essa consequência era algo importante para mim. O processo teria que ter, ao final, esta “recompensa”. Um happy ending era obrigatório para aquilo que eu estava fazendo. Se alguém falasse que tudo aquilo ali seria “apenas” uma experiência, eu levaria este comentário praticamente como um insulto. Como assim? Todo o meu esforço para nada?
E penso que quando ficamos focados nesse tipo de possível consequência alguns detalhes passam sem receber nossa devida atenção. O que eu estava dizendo em minhas letras? Não sei. Aquilo que eu fazia tinha muito a ver com o estilo de vida com o qual eu me identificava (o universo do rock), mas bem menos com a expressão de quem eu era, com minhas próprias palavras. Eu me expressava através das melodias, é claro; e também através do jeito que eu escolhia cantar; até o jeito que eu me vestia era uma expressão. Tudo aquilo era muito eu, sem dúvidas. Mas eu não tinha muito do que falar, porque não me investigava, não me propunha a isso. Diria que eu apenas saía vivendo, e o que a vida oferecesse, eu topava. Não fazia muitas escolhas – ao menos fiz algumas, como cantar e fazer parte de uma banda –, e por isso achava que a vida era uma coisa irrefreável, onde nós tínhamos que nos adaptar ao que fosse acontecendo, apenas; praticamente sem nenhum poder de escolha. Você era o que era, e ponto; seu destino já havia sido selado. Faça o melhor com isso. Pode soar darwiniano e prático, mas acho esta não filosofia de vida apenas fatalista, frustrante e péssima. Pensar desta forma – quando, na realidade, você tem muitas escolhas e pode construir sua existência da forma mais adequada (possível) ao seu modo de ver o mundo – é tirar o mínimo da vida. Mas é isso o que acontece quando você nem sabe direito quem é. Eu não sabia qual era a minha forma de ver o mundo. E por isso não tinha muito a dizer.
Só quando fui me divertindo com o meu universo e gostando de utilizar as coisas que tinham a ver comigo é que fui tendo sobre o que escrever. Só quando, nessa tal fase densa, fui praticando mais a escrita, fui tocando vez ou outra o violão e experimentando nele, só quando fui reunindo as frases soltas em diversos lugares e tentando uni-las a melodias guardadas ou novas, só quando fui perdendo a vergonha de mim mesma e fui fazendo uns troços ruinzinhos e melhorando-os aos poucos (é assim que acontece, né?), só quando fui deixando reverberar em textos as conversas que eu trocava com as pessoas de meu convívio é que fui achando que, talvez, eu tivesse do que falar. Fui começando a saber quais eram as minhas questões. E começaram a surgir outras, como sempre surgirão, mas eu já estava bem mais atenta aos sinais e atenta ao que eu sentia.
E hoje mais detalhes me chamam a atenção. Cada vez mais as coisas que vejo me trazem a necessidade de escrever e me expressar. E cada vez mais as coisas que vivo se transformam em algo, porque cada vez mais eu preciso transformá-las.
E aos poucos vou entendendo do que é que eu quero falar.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A força da grana


Quais são as regras que inventamos em relação ao dinheiro? Quais são as armadilhas na quais caímos quando este é o assunto (dentro do campo artístico)?

Hoje em dia é bem mais fácil fazermos bons vídeos e clipes (com nosso celular razoável ou com uma câmera emprestada – pois muito mais amigos têm boas filmadoras, por exemplo); é bem mais fácil termos boas fotos para divulgação; é bem mais fácil conseguirmos gravar nossas faixas em casa com uma boa placa de som. E, com isso, o olhar em relação ao artista ficou ainda mais exigente. Todo mundo tem que mandar muito bem. E não estou falando sobre a criação artística, mas sobre a parte estética. Se você não tiver vídeos muito maneiros, de ótima qualidade, não contratar maquiador e figurinista para seu clipe, não conseguir encomendar uma arte maneiríssima para a capa e encarte do seu CD, talvez você seja visto como um artista meia bomba, desleixado até. Daí fica a pergunta: para ser artista tem que ter grana? Ou: quem tem pouco dinheiro deve se abster de apresentar sua arte enquanto ela não estiver impecável visualmente?
Acho importante não cairmos nesse erro. Se atualmente a situação é mais favorável para o artista independente e bons equipamentos estão mais acessíveis, ótimo. Que bom que podemos aproveitar muito mais essas oportunidades. Mas não dá para ter um padrão estético totalmente higienizado e elitizado e achar que quem não puder fazer assim “não está levando o próprio trabalho a sério”. Sejamos francos: o que é mais importante, a criação ou o compartilhamento dessa criação?
Acho bem equivocado usar a grana como medida de todas as coisas. Por isso penso ser importante que a gente faça, sim, a nossa arte da forma mais simples, se essa for a forma possível (diria até que às vezes essa acaba sendo a forma mais interessante). Ruim mesmo é não fazer; e sempre insistirei nisso. Ruim é adiar eternamente a gravação daquele disco porque, né, você quer fazer “com qualidade”. Trata-se de uma qualidade que pede uma grana que você não tem e nem tem perspectiva de ter? Então melhor pensar em outra estratégia, porque pelo visto você quer e precisa dividir sua criação, mesmo que não seja daquela forma ideal (irreal).
(Pode ser que os seus planos grandiosos estejam, pelo contrário, te estimulando, te deixando cada dia mais motivado, e exatamente graças a essa minúcia e detalhismo você tenha cada vez mais certeza de que os irá realizar, em seu próprio tempo. Acho ótimo quando um plano vem para nos ajudar, e não para boicotar e adiar infinitamente a concretização de algo.)
O simples, é claro, talvez seja lido como desleixo. Mas, pense: é bom que seja lido assim. Digo, será que você, artista, precisa ceder à opinião de alguém? Acaba sendo uma boa prova de fogo. Se você gostou de verdade do que fez, mostre logo ao mundo – da melhor forma possível, é claro –, mesmo que preferisse que a faixa estivesse melhor gravada, arranjada etc.
Não sou a favor de fazer de qualquer jeito, e nem de fazer assim só para depois ficar frustrado e se criticando. Pelo contrário, estou exatamente escrevendo aqui um texto antifrustração (hahaha!), e por isso penso que não podemos ceder a um tipo de pressão elitista e excludente, que rola a torto e a direito por aí, e que freia nossos impulsos criativos sempre que possível.
Uma boa forma de furar este esquema é parar de usá-lo como padrão, esquecer de sua existência e sair fazendo do jeito que você pode. Sou a favor do capricho, sim, e concordo com a frase “tudo o que pode ser feito, pode ser bem feito”, mas se estivermos falando de um bem feito que depende de muita grana, aí discordo bastante.
E penso que a criatividade pode ir a nosso favor. Usar a falta de verba como justificativa pode ser convincente para qualquer um à nossa volta, mas não vai nos ajudar em nada. Vale mais tentar driblar pela criatividade. Não estou aqui fazendo discurso de coach, tipo, “se você quiser mesmo, vai lá, dá um jeito e faz” – até concordo com essa fala, de forma geral, mas cada caso é um caso, e se a gente não tiver nem o dinheiro da passagem, ou o da comida, esse tipo de pensamento é só meritocrático, mesmo. Acho bem melhor quando a gente consegue burlar esse sistema para poucos; seja fazendo parcerias e escambos, seja sendo o mais autônomo possível para colocar essas ideias em prática (cada um funciona de um jeito). Mas penso que não vale pegar um empréstimo e ficar tenso meses a fio, por exemplo, graças a um senso comum que alardeia que só através do dinheiro é possível realizar os próprios objetivos.
O que eu tenho observado na minha vida e na vida de muitas pessoas que estão à minha volta é que existe um jeito de fazer a própria arte sem ter grana, ou com bem pouca grana. Dá-se um jeito. E aí, olha que beleza, fura-se esse pensamento, ou melhor, fissura-se o capitalismo, como diria John Holloway. Deixemos os luxos para quem acha isso importante. (E se você acha, vá em frente, mas tente não julgar o colega adepto do do it yourself.)
Lembrei da ocasião em que fui fazer uma sessão de fotos com um ótimo fotógrafo: paguei a ele um dinheiro que eu não podia gastar, mas gastei. Adorei o resultado -- são as minhas fotos mais bacanas --, mas paguei o preço da vaidade. Eu não precisava daquelas fotos. Felizmente hoje entendo que isso não é imprescindível: dá para ser artista sem ter uma foto maneira. Dá para ser artista até sem uma foto sequer (ninguém confisca sua carteirinha se você não tiver nem uma 3x4). Então não tem essa. Se quiser e puder, tire fotos com um profissional que você sabe que vai te entregar um ótimo resultado depois, mas, se não é o caso, tire você mesmo ou peça para algum amigo e veja se sai alguma coisa aproveitável. Você não estará sendo um desleixado, você simplesmente estará dando o seu jeito. Isso não é sacanagem com o seu público, nem com os fotógrafos profissionais. Isso é se adaptar à sua realidade.
Acho engraçada essa balela sobre a imagem do artista, porque se a grana pode ajudar a criar bons cenários para o show, bons figurinos e bons videoclipes, na parte criativa, felizmente, o dinheiro não apita em nada. Se você não está se sentindo inventivo, se você não está conseguindo escrever, se você está se sentindo bloqueado, não é a grana que vai resolver. A parte mais importante do processo é imune às cédulas. Está se sentindo mais relaxado para compor porque não precisa se preocupar com as contas? Ótimo! E faz todo o sentido. Mas vai precisar usar o esforço de sempre para ligar os pontos, estruturar as frases da forma mais adequada ao que você quer dizer etc. Felizmente o dinheiro não compra esse esforço tão gostoso e recompensador.  
E na verdade eu acho, também, esse papo muito antigo. Quando a gente tenta incutir essa ideia em alguém ou em nós mesmos (de que o artista tem que estar sempre irretocável), estamos só repetindo um discurso que a gente ouve desde que nasceu, ou desde que começou a prestar atenção nesse assunto. É um chavão danado, e a gente está em uma época onde o questionamento dos chavões está a todo vapor. Vamos aproveitar.
(E que a grana só esteja aí para ajudar a erguer coisas belas.)

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O sucesso que ninguém tem (ou: que todos têm)


Na televisão, em Brasília: “Só agora Hilda Hilst está ‘chegando’. Nos últimos anos de sua vida é que ela cresceu perante o público.

Em um comentário do YouTube: “Marina [Lima] era bonita, linda voz, mas poderia ter ido bem mais longe, algo foi feito errado”. E a resposta a este comentário também é muito boa de se jogar fora: “Ela perdeu a voz. Talvez se não tivesse acontecido isso ela não teria entrado no ostracismo.”

Em uma entrevista de uma curadora: “Cildo Meireles nunca chegou a ter tanto sucesso internacional, não como outros artistas conseguiram, né?”

Em uma festa, uma pessoa: “O trabalho [de Liniker] é muito legal. Estourou com apenas três músicas lançadas, nem CD tinha, é muito foda.”


Saio de um show onde Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Suzana Salles cantaram apenas canções de Itamar Assumpção e lembro que o Liniker, que tanto sucesso faz, gravou “Fim de festa”, de Itamar, um cara que não fez exatamente sucesso.
É muito, muito mais charmoso fazer sucesso sem nem gravar um CD, super jovem, do que ficar gravando LPs independentes nos anos 80 (como ele conseguia?), gravar CDs nos anos 90 e morrer em 2003 com um grande reconhecimento da crítica e dos colegas músicos, mas sem jamais chegar perto do que jovens artistas conseguem hoje (no quesito público) com seus vídeos no YouTube. Anos depois, regrava-se algo de Itamar, e como vivemos em uma época MUITO MELHOR para qualquer artista independente, quem gravou consegue alcançar um grande público internético e ainda por cima divulga o trabalho do compositor para muitas pessoas que não o conhecem. Isso é incrível.
Mas a parte ruim é quando não vemos que, junto com o esforço de Liniker, há o grande esforço de outras pessoas também – e falo especificamente do esforço de criadores como Itamar Assumpção, que fazem/fizeram o favor de compor pérolas para que depois possamos cantá-las em shows, vídeos etc.
Quando achamos o máximo alguém fazer sucesso “do nada”, “mal começando”, isso pode querer dizer que talvez (e apenas talvez) a gente não respeite muito alguém que passou a vida inteira fazendo algo com toda a dedicação, mas que, no entanto, não ganhou muita visibilidade ao lado do público jovem (que é o que mais consome música, acredito), por exemplo. Talvez a gente ache que este alguém é um pouco pior, mesmo.
E o que pensamos de nós mesmos? Sim, porque se o músico “fracassado” ali não vale muito... Nós devemos valer menos ainda, segundo nossos próprios critérios, certo? Digo isso porque geralmente criticamos quem é bem mais proativo do que nós, quem já gravou várias músicas, já fez diversos shows, escreve livros há anos, já criou uma pá de coisas, já caminhou à beça. Temos a mania de criticar quem está fazendo adoidado ou já fez adoidado.
Estamos mal, e precisamos resolver este desprezo por nós mesmos. Nossos critérios tão altos (eu diria: baixíssimos) nos levam a uma espiral que talvez só nos ajude a cair em depressão. Porque se Cildo Meireles deveria ter alcançado sucesso internacional e não o fez, se Marina Lima “poderia ter ido mais longe”, se Hilda Hilst “só agora está aparecendo para um grande público” (pois a Flip resolveu homenageá-la este ano – e se a Flip falou, tá falado), realmente não sei o que é ser bem sucedido, e não faço a menor ideia se já vi, algum dia, alguma pessoa bem sucedida. Acho que não. E, repito: fico imaginando o que as pessoas que dizem esse tipo de coisa pensam sobre elas mesmas. Pois certamente não fizeram nem um terço do que estes “fracassados” aí fizeram.  
Outra coisa que percebi é que a gente continua vivendo como se ainda estivesse nos anos 90. Como se só conseguíssemos acesso à música e à cultura através dos jornais e da televisão. A gente fica esperando que as informações caiam em nosso colo, e por isso achamos que certos artistas estão no “ostracismo”. E, para completar, nem ficamos sabendo da existência de outros milhares de cantores e compositores que não ficam devendo nada a nenhum dos grandes artistas dos anos 70 e 80 (esses que tanta saudade causam nos comentadores de YouTube: “Hoje em dia só tem lixo” – engraçado, a minha impressão é de que está a cada dia melhor, e não sou nenhuma pesquisadora inveterada de música). Daí o que se faz é ficar usando a internet para ficar choramingando que só toca bosta na rádio (desligar é uma opção, vale lembrar), ao invés de deixar de preguiça e, por exemplo dar uma olhada em algum programa de música nova ali mesmo, no YouTube (como o Cultura Livre – que dá de mil nos programecos de auditório), ou ir a shows de novos artistas e bandas, ou sair para dançar em um lugar onde toque música nova e perguntar que músicas são aquelas ao DJ, por exemplo (sempre fiz isso e conheci muita coisa boa assim). Ninguém tem a obrigação de ficar catando novos sons, nem de correr atrás das mil novidades maravilhosas que surgem por dia na internet (ouvir música é prazer, não obrigação nem prestação de contas), mas não vale dizer que tal artista “sumiu” se você nem deu uma olhada para se informar sobre o fato de que, na verdade, ele já lançou uns quatro CDs desde o último que você ouviu. Assim como não vale falar que não há nada bom sendo feito. Se conferir, vai ver que tem.
Mas fugi um pouco do assunto: o que me impressiona e me motivou a escrever este texto é o fato de que somos extremamente “exigentes” com os outros, e isso deve desmotivar muito mais a nós mesmos do que a eles (embora certamente ajude a piorar a vida de quem está do lado, ouvindo este bando de chorume – penso que esta atitude realmente pode influenciar alguém a desistir do que está fazendo, ou a se achar desprezível).
E acho que é esse comportamento que faz com que a gente, paradoxalmente, supervalorize cada passo que dê. Ao invés de lidarmos com naturalidade com o que criamos, achamos que o mundo inteiro tem que aplaudir – e daí, é claro, ficamos putos com o mundo, como se este fosse injusto e não visse o nosso valor. Quem tem que valorizar o que a gente faz somos nós. Quem tem que entender, de verdade, o que aquilo significa, somos nós; quem tem que se emocionar com o que conseguimos compor somos nós. Ninguém tem que aprovar nada. Mas a gente fica às vezes até inconveniente, convidando os amigos para curtirem a nossa página a cada semana (desculpa, já fiz muito isso, mas um belo dia resolvi mudar), até que o amigo finalmente faça a obrigação dele e curta o raio da página. Ficamos nessa posição de escrever textão no Face quando nosso espetáculo fica vazio, porque achamos inadmissível que aquela exposição censurada cause tanta comoção e o nosso espetáculo burlesco – com certeza lindo – tenha ficado quase vazio. Vejo essa postura como mimada, e creio que só sirva mesmo para tentar incutir a famosa culpa em quem estiver lendo o lamento textual (entrelinhas: “Vocês não me reconhecem como artista, vocês não me dão valor, ninguém se ajuda nessa joça. É por isso que o Brasil está do jeito que está.”). De novo: quem tem que achar maneiro pra cacete o que eu faço sou eu. E que eu valorize, mas não supervalorize algo que todos os meus colegas de profissão também fazem, também suam para conseguir, também cortam um dobrado para realizar. Valorizar é essencial para a manutenção do que fazemos; supervalorizar é o mesmo que exigir que o mundo pare de fazer o que está fazendo para dar o tapinha nas costas que tanto queremos. 
Lembrei de uma fala de um personagem do livro Solidão em família, de Esdras do Nascimento, que acho que se conecta com esse último exemplo que abordei: No dia em que você se preocupar menos com você, no dia em que você descobrir que existem pessoas ao seu redor; no dia em que você descobrir que essas pessoas vivem, sofrem, comem, respiram; que essas pessoas também têm problemas e também têm momentos de felicidade, você viverá melhor”.   

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Clubinhos musicais

1) Certa vez estava comentando com uma amiga sobre rap, e dividi com ela, distraidamente, que não gostava muito deste tipo de som, e que quase não escutava nada desse gênero. Estávamos em um festival no qual haveria o show de uma rapper na abertura, por isso o tópico. Ela, por sua vez, me disse que gostava bastante de rap, por diversas razões (a vivência que teve com pessoas que ouviam muito esse estilo, as letras etc.). Que eu me lembre, assim que falei minhas impressões sobre o rap já achei meu comentário ligeiramente desnecessário, talvez por ser algo que eu mal sabia explicar, e por não ser um comentário muito construtivo. Daí, e talvez por isso, fui ver o show com o coração mais aberto – e adorei o show de Dory de Oliveira, que me prendeu do início ao fim. Essa conversa e esse show ficaram marcados.
2) Outro dia estava discutindo o arranjo de uma música com o parceiro Pedro Costa. Falando sobre sonoridades, mencionei que o baixo daquela gravação estava me lembrando a sonoridade da Rihanna (de quem só conheço duas músicas), e, tentando explicar que não curtia muito aquele estilo, comecei a me embananar: “Eu não curto muito o estilo, apesar de achar legal essa música. Quer dizer, nem curto tanto assim essa música, específica, mas até que o estilo é legal, né? Mas eu não queria que soasse assim...”. Não sabia dizer por que não gostava, e percebi que não era importante explicar. Teria sido mais fácil falar que queria outra sonoridade, simplesmente, ao invés de usar a música popzona como contraponto. Acho que já não está mais dando tanto pé colocar diferentes estilos musicais como antagonistas (talvez). E com certeza eu já sou outra pessoa, não mais aquela que precisa ser “contra” certo gênero musical. Até porque poderia ter sido colocado na minha música um elemento que lembrasse o som da Rihanna e eu gostasse. Apenas não foi o caso.
Aliás, notei que ultimamente poucas músicas têm me irritado ou tirado do sério. Há alguns anos, na verdade, tenho me sentido assim. Creio que isso tenha a ver com a possibilidade que temos, atualmente, de só ouvirmos as músicas que escolhemos. Não precisamos ficar entediados zapeando a TV, ouvindo um monte de coisa indesejada em programas de auditórios, certo? Eu, ao menos, não pratico mais este tipo de masoquismo, e acho que tem me ajudado a valorizar mais a música que não adoro, mas respeito.
Lembro que na adolescência – essa época dá pano para manga, em quase todos os meus textos ela aparece – fui, com uma colega, a um evento onde o DJ da casa só tocaria pagode. Eu fui sabendo que a festa era de pagode, e, principalmente, fui mesmo sabendo que eu não curtia pagode (só gostava de umas poucas do Raça Negra, mas mesmo assim não sairia para dançar ao som delas). A pergunta é: que diabos eu fui fazer lá? E este é só um exemplo entre vários, pois passei por esta situação muitas vezes. Acho que este é o tipo de coisa que mina a nossa energia, e faz com que a gente pegue implicância com certo tipo de música; fique com raivinha de certos universos musicais. E como hoje em dia quase não gasto meu tempo e minha saúde fazendo exatamente aquilo que não gosto, a boa vontade com os diferentes ambientes e músicas aumentou.
Gosto bastante de um texto onde o escritor David Cain comenta uma crença bem comum: aquela onde achamos que precisamos continuar pensando da mesma forma como pensávamos na adolescência ou infância – como se esta fosse nossa “essência”, como se não pudéssemos (e devêssemos) ir melhorando com o tempo. Por que deixar certas convicções velhas, verdadeiros atrasos de vida, nos guiarem até hoje? É preciso repensar o que carregamos, pois pode haver muita coisa sem sentido insistindo em permanecer no nosso sistema. Somos feitos de tantas fases, tantas épocas, e é ótimo quando podemos curtir estas fases sem nenhum tipo de censura infundada, decretada por nós mesmos.
David Cain também fala sobre como a adolescência às vezes nos joga em situações desconfortáveis e por isso pegamos asco de certas “tribos” (ele ficou enfastiado com a galera da música eletrônica/dance, por exemplo – estilo que ele descobriu adorar, tempos depois, em outra situação, bem mais propícia e longe das buátchys que ele se forçou a ir aos 19 anos). Eu, ao ouvir pagode sem estar a fim, fiquei ainda mais arrogante em relação ao que eu curtia: considerava o rock “bem melhor” que todos os outros estilos que os colegas de escola ouviam. Só mais tarde, já mais segura de quem eu era – e sabendo que não deixaria de ser eu mesma apenas por ampliar meu gosto musical –, conheci músicas bacanas de vários outros grupos além do Raça Negra (Art Popular, Fundo de Quintal, Só pra Contrariar), e aos poucos fui achando que legal mesmo era não ser uma roqueira radical. Era bem mais “diferente” (hahaha) ouvir tudo o que me desse na telha, até mesmo porque eu já sabia que era um pouco assim – Jorge Ben, Daniela Mercury, Jon Secada, Peppino di Capri e Donna Summer eram cantores que eu ouvia muito, também, um pouco antes de mergulhar de vez no rock.
Outra coisa que tenho pensado também, ultimamente, é que é fundamental, para que se possa abrir o coração para um novo universo, que ninguém fique enchendo o saco querendo forçar o outro a gostar de algo. Mas pior ainda é quando se tenta demover alguém de gostar de algo (lembro claramente da vez em que tentaram me demover de ouvir Janis Joplin). Isso só vai fazer com a pessoa fique ainda mais interessada naquilo que “não deveria gostar” ou que fique tímida na frente do missionário musical e insegura quanto ao próprio gosto (como a gente consegue transformar em chata uma coisa tão prazerosa quanto a música, né?). Deixemos cada um gostar do que quiser e vai dar tudo certo.
Acho que o que concluí é que cada vez menos está fazendo sentido isso de se privar de algo, isso de não entender que dentro de cada universo pode haver algo que te agrade. E se nada agradar no mundo do funk, por exemplo, ele também não precisa virar o inimigo, o “algo a ser combatido” (tem roqueiro aí – super bem estabelecido musicalmente – ficando ressentido com a popularidade da MC Loma, acredite se quiser). É inegável que o universo do samba, por exemplo, ajuda a construir a identidade de tantas e tantas pessoas, e certamente elas gostam de se afirmar “do samba”; é inegável que a galera do forró também se sente acolhida neste universo e se denomina “forrozeira”; é inegável que o rock me ajudou a encontrar um lugar onde me senti entre meus pares. Mas o que proponho é só que a gente não pense que não há lugar para nós em outros universos, também, porque de fato há (independente da boa ou má vontade das pessoas destas “tribos”), e essa mistura pode ser ótima. Diria que construí muito do que faço hoje em cima do rock, do forró e do samba/MPB, e certamente também em cima de outros gêneros, sem nem perceber ou  racionalizar. Mas sei que quero tudo o que o mundo tiver para dar e que for do meu agrado.   


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

E a culpa que não toque na poesia


Incutir culpa em alguém é algo que dá muito resultado. Funciona divinamente – já reparou? Já sentiu isso? Já fez isso com terceiros?
Irei falar aqui mais especificamente sobre a culpa dentro do âmbito das artes, pois este é o campo no qual atuo e circulo e é onde vejo a culpa rolando solta. Mas é importante já deixar claro que não acho que este joguinho inútil seja vivido apenas pelas pessoas que atuam na esfera artística. Pelo contrário: infelizmente vejo que este jogo está presente em todos os âmbitos de nossa sociedade, de forma incessante, e sem previsão nenhuma de algum dia acabar. (E por que acabar com este jogo, se ele é tão efetivo, se funciona tão bem?)
Recentemente fui a uma palestra sobre arte e política, e houve um momento em que uma pessoa mencionou um trabalho de artistas em uma ocupação. Achei interessante a forma como esta pessoa mencionou que era importante “pensarmos se não era o artista quem mais estava ganhando com aquela ação; se o grande beneficiado não era ele, afinal, muito mais do que os moradores daquela ocupação”. Digo que achei interessante a fala desta pessoa porque ela despertou algo em mim: a percepção de que aquele “pedido de reflexão” não era nada mais, nada menos, do que a expressa culpabilização do artista por este ter tido a intenção de fazer de sua arte um ato político. E outra percepção que tive foi a de que aquela era a centésima vez que eu ouvia aquele tipo de culpabilização, tão bem educada e pretensamente insenta. (Porque se fosse para contar as culpabilizações grosseiras e rancorosas que já ouvi ou li, aí o numero seria bem acima de cem).
Discordo ferrenhamente desta fala. O fato dela não ser original e já um tanto cansativa não é grave, mas deve ser notado também, visto que parece fazer parte de algum manual. Mas para mim o principal é que, pessoalmente, não vejo como, em qualquer situação, poderia haver algum beneficiado maior do que o próprio artista. Não acho possível que exista alguém que se sinta mais realizado e satisfeito do que o próprio artista que colocou uma ideia em prática. E mesmo quando ele fica insatisfeito com o que fez, para mais ninguém aquilo está tão imbuído de significado quanto para o autor. Eu posso amar aquela obra do Cildo Meireles e ela mudar minha vida, até, mas certamente a vida dele foi muito mais modificada, a identidade dele se construiu muito mais do que a minha ao fazer aquilo e a confecção daquela obra tem muito mais importância para ele do que para qualquer outra pessoa no mundo. O artista sempre vai “sair ganhando” (essa expressão é péssima – como se este fosse um jogo de ganhar e perder). Por quê? Porque a arte tem disso: você é potência quando cria, ainda mais do que quando absorve a arte de alguém. O ato artístico traz esta consequência consigo, felizmente. Então não há a menor possibilidade de que outros que não sejam o artista se beneficiem ainda mais do que próprio. E estes “outros” podem ser os moradores de uma ocupação ou os frequentadores de uma exposição. Será talvez pequena a mudança efetiva, visível, que ocorrerá na vida destes ocupantes de um edifício abandonado – mas pode ser que seja significativa e ótima. Eles não deixarão de viver em condições precárias, mas talvez o contato e a troca entre artista e moradores seja importante para ambos – e, pessoalmente, já considero um grande feito que esta troca aconteça (quantos de nós estamos dispostos a isso? A sair do conforto de nossas casas e colocar um projeto em prática? A trocar com outras pessoas, fazer uma residência em um ambiente totalmente diferente daquele ao qual estamos acostumados?).
Lembro das Guerrilla Girls, em uma conversa em São Paulo (quando vieram para uma expo no MASP), respondendo a diversas perguntas do público, e uma destas perguntas foi: “Vocês farão alguma ação nas ruas, ou ficarão restritas às instituições?”. A resposta, calma e tranquila como todas as respostas antes e depois desta, foi: “That’s your job!”, e desenvolveram a resposta explicando o quanto é importante que se espalhem as ideias, pois a ideia das Guerrilla Girls é exatamente esta: disseminar esta arte feminista e aguerrida, criticar a supremacia masculina no meio das artes. Achei interessantíssima a forma como elas não se colocaram em um lugar de culpadas (como “deveriam” se colocar, após esta pergunta – certo?) por estarem expondo a história de seus trabalhos em uma grande instituição. E ao longo de toda a fala delas foi possível ver o quão clara está em suas mentes a forma como pensam a arte política: todos nós temos responsabilidade a partir do momento que nos interessamos e achamos aquilo certo. Cobrar não cabe, visto que se trata de algo que qualquer um pode fazer (não estamos falando de política institucional). A performance, o ato estético-político, é para qualquer um que quiser e tiver coragem ou iniciativa para fazê-lo.
(“Ninguém faz nada” é uma falácia bem confortável. A partir do momento que você sabe, se sente indignado e pensa que é impossível ficar parado, esse assunto te pertence, e não a outro. Não dá para querer empurrar a responsabilidade. Se você deseja, cabe a você resolver este desejo.)
Há um trecho de uma entrevista de Mano Brown no Roda Viva, em 2007, em que o jornalista Renato Lombardi faz uma pergunta que penso ser a síntese deste tipo de jogo infrutífero: “Independente das letras e da música, o que mais o teu grupo faz para poder orientar, para poder abrir a cabeça das pessoas, dessa juventude que está aí com drogas e violência em tudo o quanto é esquina? O que mais vocês fazem, independente das letras e da mensagem que vocês passam?”
Ou seja: a arte não basta, ela por si só não serve. Mano Brown está errado em fazer “apenas” rap. Ele deveria fazer muito, muito mais. Felizmente a psicanalista Maria Rita Kehl, pouco depois, fez questão de comentar a pergunta: “Às vezes dá a impressão de que está todo mundo aqui achando que os Racionais poderiam resolver o problema da criminalidade”. E eu, daqui, penso que achamos que a arte é um negócio bem rasteiro, bem superficial, que necessita sempre de um complemento, algo mais “concreto”. A subjetividade é uma besteira.
Estamos vivendo uma época de muitos questionamentos, muito feminismo, muito mais representatividade negra e LGBTQ, muito mais espaço para debates vitais. E me sinto a cada dia entendendo um pouco mais o mundo em que vivo e as pessoas ao meu redor – penso que esta talvez seja uma sensação de muitos outros habitantes do mundo. E não acho que faça parte deste avanço tão visível (em textos, músicas, filmes, conversas) que estamos vivendo uma imersão em um mar de autocrítica infinda (devido a um grande medo de darmos um passo em falso). Eu, como artista, sinto que o medo de errar e de ser acusada de “pretensiosa”, ou de “sair ganhando em cima de alguém” em algum momento só me leva a ser mais tímida e retraída do que já sou, a ter mais medo ainda de ousar e arriscar. Não me leva, em nenhum momento, a querer melhorar e ter mais senso crítico. Apenas me paralisa. O que me faz melhorar, mesmo, é ler os bons textos da Lola Aronovich, ler ótimos livros como os de Adélia Prado, ir a exposições à lá Queermuseu, saber da existência de performances como La bête, ouvir o Sinta a Liga Crew, ver um filme como Te prometo anarquía. Toda essa arte me ajuda a viver melhor, pois me faz rever meus conceitos, e ainda me inspira como artista.  
Atenção e sensibilidade em relação a quem nos cerca são aspectos vitais para a convivência em sociedade. Mas vejo uma sanha, quase um desejo (para não dizer tesão) de apontar dedos, ferir, fazer linchamento virtual e querer o pior para quem usou a palavra errada na hora errada. Saibamos distinguir: há pessoas mal intencionadas; há pessoas distraídas que entendem sinceramente o próprio erro e merecem seguir a vida sem essa marca. Por que diabos estamos tão preocupados com o banimento eterno de algumas pessoas da sociedade (=Facebook, Twitter etc.)? Não penso que alguém que errou irá melhorar no isolamento total, sem nenhum interlocutor, sem amigos, sem chances de rever o que fez de errado.  
Para finalizar: culpa não é algo que pessoas de fora da arte incutem nos artistas; culpa não é algo que artistas incutem em quem não está fazendo arte; culpa não é algo que jornalistas e críticos de arte incutem em artistas; culpa não é algo que artistas incutem em jornalistas e críticos de arte. Culpa é algo que todos nós incutimos em todos, o tempo todo.