Eu
queria escrever vários textos antes de fechar este blog em um único
pacote-livro.
Queria
escrever sobre isso da gente muitas vezes querer ser a azeitona na empada dos
outros, sobre o desejo de fugir da empreitada mais perigosa e ousada de todas,
que é fazer a própria massa da empada, o próprio recheio. Sentimos tanta
necessidade de sermos parte de algum grupo que preferimos boicotar nossos
potentes projetos pessoais. Acabamos preferindo ser a “azeitona” em algum
projeto dos outros... O receio da quietude e da revolução que esta quietude pode
proporcionar acaba engolindo a necessidade de criar: o importante é estar com
outras pessoas, pois “a solidão é fera, a solidão devora”. Mas, hoje vejo, só
tem graça estar junto quando não é por medo de estar sozinho.
Queria
escrever sobre disputas, e sobre como, desde a Copa de 1994 eu percebi, com
muita força, o quanto não gosto de competições. É que eu vi a Copa do início ao
fim, mas ficava angustiada cada vez que os técnicos dos times perdedores eram
filmados. Eu nunca apreciei competições, nunca tive espírito competitivo, mas
esqueci disso quando participei de alguns poucos festivais de música. Embora esta
fase tenha sido muito legal, pelas viagens, pelas canções que cantei e pelas pessoas
que conheci nestas situações, eu ainda não havia parado para pensar,
seriamente, no fato de que competição é a base de uma sociedade na qual não me
encaixo. A sociedade com a qual me identifico – e que existe aqui, em diversos núcleos,
em diversos locais –, é aquela das feiras grátis, das mostras de música (onde “ninguém
ganha”; todos ganham), e que tem mais a ver com a visão de mundo de Sixto
Rodriguez (que “faltou” à cerimônia do Oscar, por exemplo). Quando descobri
este tipo de universo, respirei aliviada. Como em uma crônica de Mauro Rasi (“viu,
bicha? Podia!”), a vida pareceu me dizer que eu era livre para escolher o
caminho que eu bem entendesse, e não havia regras. Eu teria de ir fazendo
minhas escolhas meditando, pensando, me entendendo e sendo bem sincera comigo.
Eu queria escrever um texto para lançar a pergunta: por que é que nós nos
colocamos em uma situação onde alguém julgará se nós mandamos bem, médio ou mal
(em testes/audições/festivais)? Demorei para entender que isso não me agradava
e nem combinava comigo, em absoluto (por que não nos submetemos apenas ao crivo
mais exigente de todos, crivo esse até cruel, às vezes, que é o nosso? Por que
não apenas nos perguntamos: isso está bom, mesmo? Eu realmente gostei do que
fiz? Acho que essa é a prova mais dura de todas). E queria também escrever que
entendi que, para outros artistas, os festivais têm o efeito contrário: as competições
são um momento positivo, do qual saem cada vez mais potentes, mais motivados, e
muitos deles conseguem se manter financeiramente graças a esta estrutura.
Estou
cheia de rascunhos de textos, de fragmentos, de frases soltas que virariam
textos, como sempre viram. Mas há uns cinco dias – desde
domingo, exatamente – uma melancolia tem sido mais persistente do que o
esperado. E fico até pensando se cabe ter questões existenciais como essas que
coloquei acima. Penso: é claro que cabe. Mas há certo pudor em falar sobre
subjetividades nesse conturbado momento político – espremidos que estamos entre
o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais –, visto que a
objetividade é tão importante agora.
Porém,
existe algo mais precioso a resguardarmos, agora, que nossos sentimentos? Há
algo mais importante do que nossa saúde mental? Eu sinto que preciso manter o
ânimo, porque o desânimo é um eficiente caminho para uma tristeza que pode
levar à depressão, à descrença... Nada pior do que perder a esperança.
Tenho
pensado no bem que a música me fez e faz. No bem que os filmes que tenho visto
me fazem. Andei lembrando de André Mendes cantando “Anos dourados”, ao violão;
de Léo de Freitas ouvindo comigo “Paradise” do Coldplay, no carro, a caminho de
um casamento onde iríamos tocar essa e outras; lembro dos shows que fiz com o
grupo Cirandinha, cantando e também ouvindo André Mendes (de novo)
interpretando “Leãozinho”, ao violão. É um prazer imediato pensar nestes
momentos.
Lembro
do ensaio de ontem, com Pedro Costa, e toda a sua alegria serena, de sempre.
Foi muito bom cantar. Pois o dia estava lindo, cinza, do jeito que adoro, mas
aquele cinza parecia estar em perfeito acordo com meus sentimentos melancólicos.
E foi bom voltar de ônibus, o peito ligeiramente menos apertado, lendo um romance
que se ambienta em 1964, com uma insistente chuva batendo nos vidros. Foi bom
descer do ônibus, e principalmente subir a ladeira que é minha rua. Aí, senti
paz. E uma paz ainda maior senti ao chegar em casa e encontrar a pessoa com
quem divido minha vida. E, ao conversarmos, matei um pouco as angústias, pois é
isso o que sempre sinto quando nós dois conversamos.
Estou
lembrando dos livros que li e que estão intimamente ligados ao que estou
sentindo, porque estão em perfeito diálogo com o momento que vivemos agora,
esse momento de um medo do que pode vir. Livros de Frei Betto, Alex Polari, Heloneida
Studart, que tratam dessa atmosfera onde a liberdade está por um triz, ou onde a
mesma já está perdida.
Pensar
sobre o que o Brasil significa para mim é lembrar do quanto o país nunca me
atraiu, até os 16 anos. E lembrar que, a partir de 1999, morar no Brasil foi se
tornando uma delícia, cheia de dores, é claro, mas uma aventura muito boa. Fui
gostando de cada detalhe, cada malícia, cada brincadeira que a língua faz (gosto de sentir a minha língua roçar a língua
de Luís de Camões), cada pedaço de sol, cada esquina. Voltar de um período
de apenas três meses em um país estrangeiro foi o suficiente. Agora era hora de
valorizar o local onde eu era cidadã, e deixar para lá, bem longe, qualquer
tipo de devaneio sobre “morar na Europa”. Agora era hora de curtir o que havia
de mais valioso no Brasil, e não era pouco. E também, anos depois (muitos!), foi
hora de começar a pensar, a sério, sem ressentimentos e sem frases feitas, no
que o Brasil tinha de mais nocivo. E esse é o amor na sua forma mais
interessante, penso: aquele que entende, vê os defeitos, continua amando.
Porque vê e vive coisas lindas graças a este grande, este continental
sentimento.
Tenho
dificuldades em imaginar uma vida fora do Brasil, hoje, ao mesmo tempo em que
não hesitaria em poupar minha vida através de uma distância geográfica daqui,
se necessário fosse. Mas a verdade é que o Brasil me acolhe de um jeito que será
difícil outro lugar acolher. Se aos 12, 13 anos, eu amava tudo o que envolvesse
o rock e a língua inglesa, hoje prefiro uma multiplicidade de coisas, e em
especial a multiplicidade que existe no Brasil: o clima, a música, a comida, o
já mencionado idioma, as relações humanas, o humor no dia a dia, os cheiros, a
natureza, as etnias, os imigrantes, o concreto das cidades, São Paulo, Minas,
Paraná, Paraíba, Bahia, Goiás e tantos outros que conheci e que preciso ainda
conhecer.
É hora
de nos alimentarmos direito. É hora de nos cercarmos de bons momentos, de arte
que nos toca, de pessoas que vejam o mundo de forma ligeiramente semelhante à
nossa. Precisamos alimentar o coração das melhores coisas.
Tive a
oportunidade de conhecer Auschwitz, em 2016, e foi uma experiência das mais
valiosas. O grande tamanho daquele local me fez ficar bastante tempo ali,
conhecendo melhor o horror que víamos retratado em filmes e livros. Eu havia
chegado ao local bem nutrida, com plena energia física e emocional, e creio que
por isso consegui passar por tudo sem grandes traumas ou gatilhos, mesmo sendo
difícil ver o retrato de crianças chorando (posando, provavelmente, para pessoas
que só “estavam cumprindo ordens”, sabe?) e fotos muito, muito mais terríveis
do que estas. Mas eu e meu companheiro, apesar de eternamente impactados, estávamos
de pé, sangue circulando, pressão boa, saúde perfeita. Saímos de lá e falamos
sobre aquilo sem melindres, digerimos ao máximo aqueles dados tão difíceis. E posso
dizer que esta visita nos deixou ainda mais fortes, pois é isso o que o
conhecimento faz conosco.
E
insisto que se alimentar bem é fundamental, pois já estamos tendo muitas barras para aguentar, barras ainda piores do que ver fotos, do que revisitar um
passado de terror: ainda mais doído do que relembrar um horror é viver este horror em
uma versão 2018/2019.
Temos
que estar bem para lutar, HOJE, contra pessoas que certamente concordam com o
que Hitler fez, mesmo que não tenham coragem de admitir isso publicamente, por medo de perder
votos. Acreditam em outro holocausto, à brasileira, cujo alvo já sabemos (negros e LGBTIs; pessoas pobres, em geral).
Consegui
passar pelo tenso período pré-eleições vendo diariamente entrevistas de Ciro
Gomes e Fernando Haddad (este último eu acompanho em entrevistas desde 2014).
Podia ter visto também as de Guilherme Boulos, mas a dúvida sobre meu voto me fez focar nos
dois primeiros. Foi uma boa forma de manter o ânimo, vê-los explanando suas
visões sobre educação, saúde, cidades, mobilidade. Até o dia 7 de outubro eu
consegui segurar bem o moral, vendo como existem políticos muito bem preparados
e, principalmente, motivados por ótimas razões, norteados por uma vocação pela
coletividade. Depois é que o cenário ficou ainda mais sério. Ver as entrevistas
de políticos que admiro ainda é uma necessidade, mas já não me alivia tanto.
Não dá para fingir que tudo não se agravou desde o último domingo.
Eu
estava com vontade de falar sobre tantas coisas, antes de fechar mais este
blog! Queria escrever um texto sobre quando fui com minha antiga banda a uma reunião
na Sony, ali em Botafogo, em 2005. Foi desconfortável. Haviam nos chamado para
conversar após uma crítica positiva de nosso CD em um jornalão. Fomos recebidos
pelo Bruno Batista (diretor artístico? Acho que sim), que nos falou sobre
várias coisas, sobre como o universo do rap tinha letras ótimas etc., sobre como a banda
Luxúria (que na época se chamava Boneca Inflável) era muito boa. Mas durante toda a
reunião nós, da banda, sentimos algo do tipo “o que estamos fazendo aqui”? Não
entendi até hoje.
Também até
hoje não entendi o e-mail que recebi de alguém da Universal (Dani Motta?)
falando que o Paul Ralphes, diretor artístico da gravadora à época, queria
conversar comigo... Ou era ela, Dani, quem queria conversar comigo? Foi algo
assim. Mas o nome dele surgiu no e-mail, que eu respondi prontamente. Isso foi em 2012, e nunca mais ouvi
falar deles.
Nunca
entendi também o fato de alguém da produção do The Voice ter me ligado em 2012
sobre uma audição (“eu nem me inscrevi!” – “mas o Daniel Silveira te
indicou”. Não sei quem é Daniel Silveira). Fui fazer o teste, que foi até
interessante porque cantei uma música que gosto muito; mas dias depois alguém
ligou querendo saber de mim, se eu tinha alguma história difícil de família, se
havia algum causo interessante para contar etc. Deu para sentir o clima xarope na
hora.
(Estes
três últimos casos aí foram bem emblemáticos em relação à minha total inaptidão
para qualquer coisa do tipo gravadora, teste, audição, mercado musical etc.)
Mas não
vai dar para mencionar aqui tudo o que eu queria falar. Estou olhando todos os
bilhetes que escrevi, com anotações “escrever texto”. Não vai dar. Eu queria escrever
50 textos para publicar, mas serão apenas 42, ao final. Sinto que é hora de
fechar. Já estou escrevendo outras coisas, estruturadas de outra forma, e
bastante envolvida com estas.
E a
melancolia que veio com o primeiro turno das eleições me fez buscar alento nos momentos
que mencionei: Coldplay, “Leãozinho”, “Anos dourados”, a serenidade alegre do
Pedro Costa, chegar em casa, conversar com quem amo. E ir, hoje, a uma festinha
de Dia das Crianças, em Santa Bárbara, Niterói, aqui do lado de casa, também
ajudou muito. Ver a rua fechada para que filhos e pais se divertissem com
guloseimas, Guara Crac e presentes. Havia mágico, muitos cachorros de rua,
escorrega inflável. Foi um passeio delicioso, e voltei mais animada, e diria
até que, hoje, sexta-feira, estou sem melancolia. Diria que ela se foi.
Mas ela
voltará, porque a razão dela ter vindo ainda está aí. E exatamente porque as
coisas estão mudando tanto, penso que é hora de tornar estes textos, já, um
livro independente, para que o ciclo se feche. Não há dúvidas: as coisas estão
mudando muito, o Brasil está mudando, e talvez tudo fique muito diferente. Um
novo ciclo de conversas, textos, músicas, talvez se inicie. Ou não! Mas a
impressão é esta, e a vontade é de encerrar, por ora.
Fico
satisfeita de ter podido, mesmo que rapidamente, mencionar algumas das coisas
que eu queria ter desenvolvido por aqui. Foi bom misturar sentimentos e contar
causos neste texto longo; foi bom desabafar sobre o momento tenso, mas também
celebrar os momentos gostosos, como uma festa de Dia das Crianças, um ensaio,
um livro lido no ônibus.
Acho
que acabei conseguindo falar sobre o que eu queria, na verdade. Que bom.
Espero
que nós consigamos seguir sem renunciar à nossa subjetividade, aos nossos
prazeres, a todas as coisas que constroem nossa identidade. Que possamos
aplicar nossos próprios remédios tarja branca, sem restrições, sem receitas,
sem receio. Talvez isso nos deixe fortes o suficiente para enfrentar toda a
bronca que pode ainda vir.
E já que estamos
falando em preservar a saúde, fechemos com a doutora Nise da Silveira: “Vou
lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais
profunda”.